quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O Banquete da Meia Noite

Foto: Avelina de Moray


Quase onze da noite e chovia pra cacete.
Aquela tempestade de filme de terror classe B. Só não tinha lobo uivando, porque no Brasil não tem lobo (pelo menos que preste para fazer sonoplastia em filme). Já lobisomens...
Condessa Drake.
Distante da vetusta velhota que esperava encontrar. Passada dos trinta, mas uma morena tesudíssima. Tudo menos cara de inglesa. Vampirescas sombras preto-azuladas nos olhos escuros e um batom sanguinolentamente vermelho nos lábios debochados. Roupa negra convenientemente transparente: nada vulgar, ocultava o necessário, expunha o que desejava e deixava adivinhar o quanto de enlouquecedor devia se esconder nas dobras quentes transpiradas daquelas carnes.
Conde Drake, o marido, morrera há pouco devido a uma raríssima doença no sangue e lhe transferira uma fortuna que deixava de pau duro os babacas dos corretores da Bolsa de Valores. Ela tinha sido empregada na mansão: diziam que dera o “golpe do baú”. Vindo da Inglaterra, presume-se, nunca ninguém soube ao certo, o conde vivera de rendas e de investimentos tão insondáveis quanto a fórmula da Coca-Cola.
Esse negócio de nobreza nunca funcionou no Brasil a não ser para o Pelé, para o Roberto Carlos e para o Rei Momo, mas ela fazia irredutível questão do tratamento nobiliárquico, meu chefe tinha me advertido. E me deu outro amigável aviso, o corno: “Além de só chamar a mulher de condessa, traga esse contrato de venda fechado, senão te arranco o saco antes de te demitir”. Não sei porque hesitava, toda manhã, no banheiro, a limpar o rabo com aquele inútil diploma de Direito que me obrigava a aguentar esse tipo de coisa para sobreviver como o mais vagabundo corretorzinho de imóveis de São Paulo. Mas devia ser fácil: ela manifestara interesse em adquirir o imóvel.

“Dou-lhe minha garantia, condessa, de que nossa empresa sente-se honrada em negociar com uma mulher com sua categoria e respeitabilidade”.
Por favor, meu caro, evite essa afetação cavalheiresca, pois você me parece pobre o suficiente para que esse tipo de conduta apareça como algo flagrantemente postiço em você. Estou plenamente consciente de que minha reputação antecede mesmo às opiniões nada elogiosas que todos têm a meu respeito”.
Eu ia protestar e me desculpar ao mesmo tempo.
“Não se ofenda. Também já fui pobre. Mais do que você tenha sido ou possa imaginar. Gostou de minha mansão? Pois saiba que conheço cada canto dela. Limpei cada milímetro de chão, parede e teto dessa casa durante mais de dois anos. Porém não sou uma golpista, como dizem”.
Eu não tinha nada a ver com aquilo tudo, não estava disposto a ouvir nada. Só queria pegar a assinatura dela no contrato e ir embora. Mas a condessa Drake não era o tipo de mulher que pudesse ser interrompida.

Vinha do interior, só não analfabeta porque as freiras perceberam o quanto eu era inteligente e me deram de graça a educação que o matuto do meu pai jamais poderia pagar para mim e para a ninhada de filhos que perambulava com os narizes escorrendo nojentos pelo casebre de cômodo único. Bem, de graça, não totalmente: tive de fazer algumas coisas para elas, que elas garantiam não ser pecado desde que eu jamais comentasse com ninguém. Depois de um tempo aprendi que até podia ser pecado, mas era prazeroso. E acabei gostando. E homem, só o mal cheiroso jardineiro do convento que me violentou assim que pus peitos para espetar o tecido fino da blusa branca do uniforme. Não foi bom, mas também aprendi que tinha de ser.
Era uma semi virgem nesse país dominado por quase corruptos semi honestos, quando me apresentei ao conde, homem extremamente vistoso pela idade, aqui na capital. Pensei não ter causado impressão maior no primeiro momento. Colocou-me sob as ordens de Hannah, uma mulher loira, grande e branca, bonita a seu modo. Verdadeira “sargenta”, viera com ele da Europa. Quase só o via nas manhãs, no escritório, empunhando uma linda faca de prata, abrindo a correspondência. Ignorava-me. Porém, quando percebia que ia saindo, após terminar a limpeza, dizia sem levantar os olhos dos papéis: “Se um dia você for má e trair a minha confiança, terá quatro refeições por dia”. Não entendia, já estava mais do que satisfeita com o café da manhã, almoço e jantar, mesmo que na cozinha. Mais de dois anos assim: empregadinha na limpeza.

O terror começou pouco depois das dez. Quase dormia quando meus cabelos foram violentamente puxados do travesseiro: “É isso que dá querer fazer caridade para essa gentinha inferior!” O susto não me deixava entender porque a saliva de Hannah respingava raivosa em meu rosto: “Ladrona, você é uma putinha ladrona! Confesse, você roubou! Onde está ela?!” A bofetada violenta doeu mais no meu caráter. Consegui me soltar, não sabia o que estava acontecendo, mas o diabo que iria dar o prazer àquela cadela alemã. Foi instintivo, nem sei bem porque fiz aquilo: a expressão de ódio da “sargenta” virou uma máscara cômica e assustadora quando lhe enderecei o sorriso de maior desprezo que consegui. “E ainda se atreve a ser debochada, sua rameira de sarjeta? Você vai ver só o que o conde vai fazer com você!”

Lágrimas escorriam, mas não emiti um som e jamais perdi o sorriso. A tapas e pontapés, quase o tempo todo arrastada, fui levada ao salão inferior. Você poderá conhecê-lo, se quiser. Jogada lá dentro, entendi porque aquela porta artisticamente entalhada sempre estivera fechada, proibida à minha curiosidade e às minhas perguntas. Uma decoração pesada e escura baseada em madeira, metal, couro e veludo vermelho iluminada por archotes. Uma atmosfera medieval que ao invés de assustar, fascinava. Ajoelhada, quando acostumei os olhos à pouca luminosidade, reconheci, à minha frente, o conde sentado numa enorme cadeira, quase um trono, trajando um roupão de cetim preto. “Então você roubou a faca de prata?” Não tive tempo de negar. A dor queimava em minhas costas como um incêndio. De onde o conde tirara aquele chicote? “Assim é melhor. Sem o sorriso, com expressão de sofrimento, seu rosto fica mais lindo. Hannah: as roupas!” Ouvi um tilintar sinistro. Com a visão umedecida vi a “sargenta” aproximar-se ameaçadora: estava praticamente despida, apenas tiras de couro preto estrategicamente atadas ao corpo e dois sininhos de prata pendurados nos bicos dos seios. Com poucos movimentos bruscos, arrancou minhas roupas. Com violência puxou meus braços para trás e amarrou minhas mãos às costas. Agora era medo puro, pavor. “ Misericórida, em nome da santa cruz onde morreu Nosso Senhor Jesus Cris...” Gritei como nunca tinha ouvido alguém gritar. A mão do conde esmagava meu seio direito. Seu olho vermelho brilhante a milímetros do meu. Hálito quente. “Jamais torne a proferir esse tipo de blasfêmia nesse recinto!”

Os sininhos de prata soavam torturantes enquanto Hannah, aos tapas, me fazia subir na enorme mesa. Toalha de veludo negro, candelabros prateados, velas vermelhas. De volta ao trono o conde sorria perverso. “Avisei que se fosse má e traísse minha confiança teria quatro refeições por dia. Você roubou a faca de prata. Então vai ter o banquete da meia noite, ou melhor, vai fazer parte dele. Melhor ainda: será o prato principal. Hannah!” A alemã agarrou meus cabelos e foi me fazendo recuar até me deitar numa imensa bandeja de ouro. O frio em minhas costas era imenso, mas o tremor pelo medo era maior. O que eram aquelas coisas geladas grudando-se em minha pele? “Confortável, não? E saudável também. Uma deliciosa composição vegetal tem a leveza exata para uma refeição nesse horário. Nada de carne, a não ser a sua. Aliás, uma alimentação saudável é um dos mais sofisticados passos na caminhada rumo à busca pela imortalidade.”

Eu estava cercada por toda espécie de folhas e flores de todas as cores. “Parabéns, Hannah. Quase uma obra-prima. No entanto, a perfeição só é revelada àqueles que detêm o perfeito e preciso conhecimento da arte do bom tempero.” As chicotadas vieram seguidas. Eu gritava feito louca. “Mais minha linda, mais. Sua dor, seu sofrimento vão transformar esses ingredientes banais na mais fina iguaria para o deleite de meu exigente paladar de conhecedor.” Foi um uivo quando senti algo me invadir o corpo: o enorme pepino que Hannah introduzia em minha boceta. O couro do chicote continuava a mastigar minha carne. Uma dor que jamais pensei suportar quando algo rasgou a resistência do buraco de meu rabo: uma cenoura que a “sargenta” enfiou até o fundo, depois eu soube.

Com um movimento teatralmente estudado o conde livrou-se do roupão e mostrou-se nu ostentando uma ereção de um tamanho difícil de acreditar num homem com aquela idade. O açoitamento voltou ainda mais violento. “E agora, o toque final da sofisticação de um gênio”. Com uma agilidade espantosa para seu corpo, Hannah subiu na mesa, escancarou as pernas e começou, lentamente, a mijar sobre meu corpo. Da cabeça aos pés (cabelos, olhos, boca, língua, seios, ventre, sexo, coxas, tudo encharcando meu nariz com aquele tonteante aroma liquefeito de interior de fêmea), senti a quentura daquele líquido que brilhava amarelo à luz das velas banhando minha pele, infiltrando-se ardido nas feridas. As chicotadas não importavam mais, pareciam não doer. Pelo contrário, traziam prazer a cada contato violento com meu corpo. Estranho enfeitiçamento quase hipnótico. Comecei a sentir paz e felicidade. Muita felicidade. Estava sorrindo novamente. A língua do conde, passeando pegajosa em cada centímetro de minha pele, saboreando minha carne molhada pelo mijo, era deliciosa. Não sabia o que estava acontecendo comigo, mas jamais havia sentido nada tão maravilhoso na vida.

“Você pensou que podia esconder de mim, mas eu encontrei!” Os olhos perversos do conde refletiam um estranho brilho metálico. A faca de prata estava em sua mão. Impossível negar o medo que chegou sorrindo. Porém dessa vez não me assustou, me deu uma vontade, uma ânsia de experimentá-lo e sorri para ele também. Mão com destreza de mestre escultor, com ensandecida meticulosidade cirúrgica, o conde fez com que a afiadíssima lâmina brilhante semicircundasse o bico de meu seio, não para cortar de vez, só para fazer sentir o metal frio entrando quente na carne e para deixar um filete de sangue escorrer generoso, na medida. Drake sugou guloso quase em êxtase o que ele chamava de “sua gota de imortalidade” (dava até para acreditar pela virilidade de dar inveja a muitos jovens que ele ostentava) e eu senti seu esperma quente melar as carnes de minhas coxas. Gozei junto com ele. Lá embaixo, com uma deferência quase religiosa, a língua de Helga era a serpente gulosa que sorvia de minhas carnes cada gota de porra do conde.

Esse foi meu, literalmente, batismo de sangue. Uma louvação pagã à vida. Aquilo não era uma sacrificial orgia demente, bárbara. Era uma cerimônia de amor. Não para homenagear a algum deus específico. Ali estavam sendo reverenciadas, numa celebração de delícias, as divindades do gozo a que todos os iniciados no prazer têm acesso sem precisar saber ou dizer os nomes. Um cerimonioso ato de comunhão com as deidades da satisfação da carne que habitam corpos, corações e mentes de cada homem e mulher que já viveu, vive ou viverá nesse mundo. Essa é a verdadeira imortalidade que o conde perseguiu e que alcançou com tanta sabedoria. Essa imortalidade que está ao alcance de todos, mas só acessível aos que têm coragem de encarar sua face amedrontadora, porém belíssima.

As sessões, com algumas variações, se repetiam de tempos em tempos. “Você parece faminta, minha linda, acho que está precisando do banquete da meia noite”, ele me dizia, sorrindo maroto para Hannah, a quem também passei a olhar com olhos de admiração. Depois vieram meus doutorado e mestrado (com distinção, claro) mas até por respeito, tive de aguardar pela morte de Hannah: um câncer feio a levou depois de uns três anos. Aí eu assumi, soberana, a direção das sessões ao lado do conde. Só que, ao contrário de Hannah, eu era jovem e bonita o suficiente para que ele se apaixonasse e me pedisse em casamento. Fomos extremamente felizes enquanto durou: ele agradecido a mim por tudo o que dei a ele. Eu eternamente agradecida por ele ter me transformado mais do que na Condessa Drake, numa verdadeira mulher e me ensinado, pela submissão, pela inferiorização a alcançar a supremacia, a superioridade, a quase divindade enquanto fêmea.
Como pode ver, meu caro, estou longe de ser a oportunista que todos os invejosos caluniam e mais do que merecedora de cada centavo que herdei do conde. Com sabedoria, administrei e multipliquei a fortuna que ele me deixou e hoje desfruto de comodidade suficiente para orgulhosamente dar prosseguimento à obra dele: o desfrute da imortalidade em cada instante de gozo pleno.

A chuva havia piorado. Raios e trovões, agora mais constantes, faziam o cenário, sem dúvida, hollywoodiano. Em algum lugar da casa, o som de bronze antigo de um relógio seguramente muito valioso começou a dar doze badaladas. Quando elas cessaram comecei a ouvir um tilintar agudo.

Uma mulher de traços orientais, praticamente nua, apenas tiras de couro estrategicamente atadas ao corpo, com dois sininhos de prata pendurados nos bicos dos seios entrou na sala com estudada lentidão e colocou-se ao lado da condessa. “Essa é Kyoko, minha empregada. O senhor não gostaria de ser meu convidado em meu banquete da meia noite?” Ainda meio zonzo por tudo o que ouvira, só consegui gaguejar: “Muita gentileza, condessa Drake, mas não sou exatamente um vegetariano.” Ela me endereçou o mais diabólico sorriso que já vi. “Não seja precipitado, meu caro, veja o que lhe ofereço como entrada” — fez a oriental girar o corpo e acariciou sua bunda — “e olhe a delícia que terá como prato principal” — rasgou com força o vestido fino, abriu as pernas e exibiu-me o corpo enlouquecedoramente perfeito coroado por seu sexo úmido sem pelos: uma carnívora boca salivosa escancarada num grito chamativo sem som, com toda a eloquência da excitação da carne.

Bem, eu precisava fechar aquele negócio para não perder o emprego.
E meu médico havia mesmo me recomendado que mudasse meus hábitos alimentares.
Então, tudo em nome da boa saúde e da tentativa da busca pela imortalidade.

5 comentários:

  1. Nossa...simplesmente delicioso

    adorei a criatividade, o cenario, os detalhes

    beijos Senhor

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    1. ... sorry, apenas agora vi teu comentário...
      ... tks a lot pela leitura & pela apreciação crítica...
      ... contente que tenha sido de teu deleite...
      ... kisses...
      A Carne Sorri Na DOR

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  2. Vindo visitar-te,leitura que encanta,prende e aquece....
    Adorei
    Beijos Nega

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  3. Uau... escreve muito bem!
    Muito bom!

    bjs doces

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    1. ... tks pela apreciação positiva... bom tê-la em Meu Chão...

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