quinta-feira, 4 de julho de 2013

A Mulher de Cabelo Vermelho



Foto: Elena & Vitaly Vasilieva
Well: era uma vez um cara chamado André que não sabia se o pai chamava Jonas ou João, que tinha um irmão mais novo chamado Pedro, que trabalhava num negócio de peixes com dois caras chamados Tiago & João (filhos de um cara chamado Zebedeu que também tinha um negócio de peixes) & que com um amigo João, foi aluno de outro João & junto com esses caras & mais outros caras formaram uma patota em torno de um carinha estranhíssimo que falava coisas muito estranhíssimas, de quem tornou-se um dos melhores amigos & como adorava falar mais do que a boca, começou a repetir as coisas estranhíssimas que o carinha de quem era amigo falava, envolveu-se num monte de confusões, foi perseguido, atacado por multidões, escapou de ser preso & julgado muitas vezes, tinha sempre anjos & demônios ao seu lado.
E o que Rouge tinha a ver com essa história de pobres cheirando a peixe, mais cheia de joões do que a vida de dribles do Garrincha?
O caso é que esse tal de André, um dos principais discípulos de Cristo,  protetor dos pescadores, mineradores, açougueiros & fazedores de cordas, invocado na proteção contra a gota, dores de garganta, tosse & pelos casais com problema de infertilidade, quando foi capturado por Nero, na maior ”máscara” desse mundo decidiu dizer que queria porque queria morrer numa cruz diferente da de Jesus. Os romanos, que adoravam esse tipo de insolência, providenciaram correndinho uma cruz em forma de xis, onde André, contentíssimo, sofreu por dois dias até morrer felicíssimo.
O "X" negro no meio da sala, uma cruz de Santo André, um verdadeiro ícone de delícias & perversidades para os praticantes de sadomasoquismo & Rouge, nua aos olhares de todos, amarrada, espera, latejando em emoção & em ansiedade, pela primeira dor do suplício pela flagelação.
§
Noite quente e úmida como sua boceta.
A surpresa de um invasor frio elétrico percorreu-lhe a espinha quando surpreendeu a visita do pensamento obsceno sobre o forno entre suas pernas. Uma estranha sensação de formigamento delicioso entre pernas ao cruzar as coxas no banco de trás do táxi. Um tanto de incômodo, mas não tinha como evitar a quente umidade das suas secreções de fêmea que lhe encharcavam a calcinha.
O velho bairro residencial, periferia, ruas quietas com postes de luz monótonos & as nada novidadeiras apagadas casas baixas — no máximo sobrados — antigas de sempre.
Já tarde da noite para quem acorda cedo, mas ainda não conseguiu fechar os olhos.
Porém, o destino nunca dorme.
O casarão iluminado em fotográfico amarelo pálido, como cenário de filme de terror barato, não tinha qualquer identificação.
Não era preciso.
Rouge sabia que ali ficava o "Kýrios".
Atravessada a pesada porta de madeira, a senha sussurrada à recepcionista com cara de manicure, o corredor cuja pouca iluminação não conseguia disfarçar o cheiro de poeira.
Espera todos saírem do vestiário antes de se despir. Passa os dedos queimando de febre de insatisfação pelos cabelos pintados de vermelho incomodamente luxuriosos como as chamas de uma Ferrari incendiada antes de acomodar a meia máscara dourada no rosto.
"É fácil encontrar demônios: é que, além da falta de coragem as pessoas geralmente não sabem o que devem procurar", Lord Lupus sentenciara, irônico como sempre, antes de dar-lhe as costas.
("Do Delírio ao Êxtase").
O título viera na temperatura exata do primeiro gole de champanhe após, o gozo com um amante bonitão qualquer de expressão inexpressiva.
Alta badalação, a noite de abertura da exposição — série propositalmente descompromissada de snapshots de casais nus fazendo sexo — mais um sucesso de público & crítica.
Quem o dono daquela ironia debochada que sorria complacente para o título na capa do catálogo?
"Interessante — as palavras vinham enfumaçadas pela nicotina do cigarro — mas pura bobice vazia disfarçada em pernosticismo intelectualoide.  Parece esse modismo de filosofia de para-choque de caminhão disfarçada de sabedoria orientaloide de pasteleiro de olho puxado que os ricos usam para dizer que não deve haver apego aos bens materiais e que os pobres imitam para parecerem pedantes... sem bens materiais".
Por que a total abulia ante o atrevimento daqueles olhos que pareciam avermelhar-se na audácia da descortesia? Justo ela, que sempre se soube bonita e cuidava ter aparência elegante & refinada para conseguir levar para a cama os homens que escolhia, com a regularidade de um trem inglês.
"Rouge, não? Você, Rouge, parece um enfeite de bolo de aniversário, mas lobos não comem açúcar. Eles precisam de carne para manter afiadas as presas. Já foi comida muitas vezes, imagino, mas nunca foi devorada. O lobo, antes de atacar, escolhe cuidadosamnete o sangue que quer derramar & a carne que deseja estraçalhar, porque é capaz de reconhecer no meio de qualquer rebanho aquela ovelha que prefere ser devorada a viver seu medíocre destino de ovelha. Ela não conseguirá escapar, mesmo escondendo-se atrás de fotografias eróticas socialmente aceitáveis, simplesmente porque não pode... nem deseja ser poupada".
Lord Lupus elegera Rouge como sua próxima vítima, mas ela não poderia falhar, precisava provar-se digna de ser acolhida como carne de sacrifício.
Chegou perto, mas a entrada em entrega no covil da fera lhe havia sido negada, pois...ovelhas, como lobos, perdem a pele mas... não perdem o vício) Antes dele, havia ganido como uma cadela no cio a cada vez que abrira as pernas para homens, mas agora desejava uivar como uma loba violada entre mordidas de caninos sedentos por sangue. Iria provar-lhe o contrário: depois dessa noite, finalmente se sentiria viva quando o sol nascesse amanhã. Queria ser a vingança da super prostituta que cavalga a besta.
§
Passos leves com cadência de ataque animal às suas costas. Não se atreve a olhar, surgiu sem mais como chuva de repente em dia ensolarado, mas sem dúvida, é um nariz que se introduz no rego de sua bunda e se esfrega ali por um momento. Descompassada respiração quente e úmida contra seu mais interditado buraco. Uma língua quente como fogo, viva & molhada como um peixe, pesquisa intrusa cada dobra de suas pregas & impaciente procura espetar a entrada. Concordara com as regras: não haveria penetração, mas até que a compra se concretizasse, seria carne de caça desfrutável à degustação de qualquer homem ou mulher na casa.
Separa as nádegas & faz força para abrir-se, alargar-se & mexe os quadris demonstrando aceitação. Suspira quando os movimentos circulares repetem-se com perícia naquele ponto tão especial & sensível. A saliva farta que escorre pegajosa queimando suas coxas demonstra a intensa luxúria de quem chupa seu rabo. O grunhido de satisfação que escuta é, sem dúvida, feminino. Porém, quando se volta, ninguém. Ainda só no vestiário. Um estranho cheiro de carne no ar. Será esse o aroma do tormento dos prazeres proibidos? A lua de lá de fora de repente nasce cheia & nova nela & um luar estranho parece brilhar do interior de meu sexo exposto em inocente infantilidade pela ausência de pelos que lhe foi ordenada. Sente-se estranhamente orgulhosa em ostentar-se obscena & sem escrúpulos. Apenas uma pequena transpiração entre seus seios pode denunciar o medo que ainda sente ante o não conhecido que a partir de agora pode apresentar-se a qualquer instante. As cédulas de dinheiro começam a umedecer-se no calor do suor nervoso de sua mão.
Caminha deixando apenas uma névoa perfumada para trás.
Iluminação indefinível. Porém, estranhamente, ao mesmo tempo em que o ambiente parece muito escuro, há uma luminosidade brilhante de cor indescritível que permite enxergar tudo em volta — apesar das nuvens enlouquecidas da fumaça dos cigarros — com a clareza demente da consciência de um alucinado. A música, algo hipnótico, quase inaudível, escorregava insinuante ouvido adentro, fazendo o sangue dançar leve, ritmado, pelas veias do crânio de Rouge.
Um vulto branco, redondo, enorme, uma baleia bípede, cresce lento em direção a ela como se rolasse em silêncio pelo chão. O rosto envelhecido, cheio de buracos que a maquiagem pesada escorrendo pelo suor viscoso não consegue esconder, destaca-se enojante. O baton vulgar começa a falar.
— Eu sou Moby Dyke. Seja bem vinda por sua conta & risco ao paraíso onde o fogo do inferno arde sempre sem queimar. Apenas para aqueles que sabem brincar com o fogo, é claro. Aqui a queda não tem fim. É só a delícia de cair sempre & sempre. Aqui o teatro do sonho vira realidade.
O farisaico sorriso rechonchudo da loira falsa incomoda quase mais do que a transpiração suando perfume que não disfarça o cheiro suburbano de nascença. Não estava interessada em discurso vazio disfarçado em pseudo filosofia barata, como tinha aprendido a desprezar com Lord Lupus. Entrega o dinheiro da maneira mais dissimulada possível. O instante é imperceptível para que sequer tente evitar o beijo faminto & selvagem. A língua veio para fora da boca da gorda, balançada animalescamente, ainda com sinais de saliva grossa gotejante. Tentou não virar o rosto com uma careta de nojo. Rouge reconhece o sabor do próprio cu na língua da cetácea adiposa: “Repugnante vadia nojenta!”, consegue apenas pensar.
A gordurosa meretriz, no entanto, não estava disposta a abrir mão do ensaiado discurso de mercantilismo prostituinte disfarçado em literatice barata.
— O "Kýrios" é onde o burlesco junta-se ao imundo, onde a perversidade corrói o caráter & o deboche deprava as consciências, onde as almas cansadas e vacilantes vêm em busca de alívio. Todos estão aqui para sucumbir às aberrações, às perversões, às máculas do corpo, aos vícios, à malícia sem dissimulação. Entregam-se aos beijos e descaminhos das paixões estéreis. As bocas dos sexos de homens e mulheres aqui vomitam todos os espectros do império do prazer. A maciez do veludo do subterrâneo das mais baixas paixões humanas reveste cada centímetro da minha mansão das trevas interiores.
Conduzida com delicadeza estudada, sabe que está sendo exibida.  Carne humana, feminina e masculina, despida ou quase, brilha em todos os cantos contorcida & retorcida em meio a flagelações, gritos de transpiração gordurosa de prazer, ódio, gozo, medo, tristeza, algazarra de lamentações, de gemidos de tudo e de todos, sorrisos de deboche ou de agradecimento, lágrimas iguais e diferentes.
Réptil calafrio rastejou por sua espinha abaixo, quando ouviu a gargalhada debochada em seu ouvido.
Rapaz até bonito, andando tontamente veio em sua direção & rente a seu nariz salivou um perverso sorriso inundado de baba grossa com cheiro de mau hálito.
— Quem matou Bambi só porque ele era um veadinho?
O rapaz dá uma lambida asquerosa na face de Rouge. Risadinha histérica demente.
— Não o leve muito a sério. A gargalhada do diabo é tão eterna quanto teu sofrimento será no paraíso, comentou com enfado a obesa marafona.
Duas morenas lindas, parecidíssimas. Qualquer um podia jurar que eram gêmeas. Juramento desnecessário. Falaram em sotaque enrolado como numa língua desconhecida.
— Colheradas de amor? É a geleia de pérolas.
Rouge sabia que aquele líquido branco, viscoso & brilhante que lhe era oferecido em colheres de prata & que elas devoravam gulosamente como crianças travessas lambuzando-se com sorvete era esperma. Fêmea adivinha porra antes do cheiro. Apesar do asco, sabia não ser adequado recusar & saboreou com a satisfação que pôde encontrar com o pensamento voltado a Lord Lupus, porém, o suco do macho ansiado lhe havia sido interditado pelo mesmo desprezo que exterminara as borboletas de seu estômago.
— Sabe que um homem normal tem somente nove centímetros cúbicos de esporra em cada gozada? — perguntou esclarecendo Moby Dyke.
§
Finalmente o palco. Uma placa com o número 6 é pendurada em seu pescoço. É colocada junto a outras três mulheres & dois homens, como ela, nus. Sem imodéstia, Rouge soube-se imediatamente linda com seu corpo perfeito & bem cuidado, ante o espetáculo não tão harmônico mostrado pelas carnes despidas das outras quatro fêmeas, como ela & os homens, expostas como gado. A iluminação intensa só conforta depois que os olhos de acostumam. Uma escuridão amarelada tomava conta do ambiente iluminado por uma infinidade de velas de todas as cores, formatos & tamanhos fedendo a cera derretida. Muita gente em pé, fumando, bebendo, falando alto & gargalhando infeliz. Pessoas sós ou em grupos em sofás de couro vermelho umedecidos, brilhantes de transpiração de carnes humanas.
— Hoje vai ser o sábado negro da sua vida.  Não vá me trazer problemas, mulherzinha rica, ameaçou detrás da luz a voz azeda & estúpida como um limão cego de Moby Dyke, que a partir daquele instante comandaria com deboche crescente & cinismo estudado o leilão de escravos.
— Dominadores e dommes: é com grande orgulho que o "Kýrios", a unha infeccionada do dedo ruim enfiado fundo na ferida do cu do falso podre moralismo de nossa sociedade, promove hoje mais um de seus famosos leilões de escravos. Temos em oferta carne da melhor qualidade em todos os estilos, formatos, cores & idades, ansiosa para submeter-se aos seus desejos & caprichos: são seres inferiorizados na ansiedade pela humilhação, a quem não é mais permitido ter tempo para ter medo do medo. Do Gênesis ao Apocalipse, passando por céu & purgatório, vamos conduzí-los ao décimo sétimo dos infernos. A partir de agora a regra no zoológico é: não provoque as feras & alimente os animais.
As gargalhadas escorreram nojentas como saliva de escarro pela alma de Rouge, que tentava focar em pensamento a face de Lord Lupus, mas estranhamente a figura em seus olhos fechados insistia em dar-lhe as costas.
Sessenta por cento para a casa, quarenta por cento para a peça, eram as regras, esclarecera a pançuda gigolette pelo telefone. Como se dinheiro fosse o que nunca foi para ela, Rouge: um problema. Se soubessem o quanto ela se sentia menos que barata, sem valor naquela noite, que facilmente pagaria cem vezes o preço do que eles pensavam estar comprando. Tanto que se oferecera para participar gratuitamente, recusando pagamentos.
Como um rebanho de possessos, alguns homens e mulheres apressaram-se em subir ao palco. Os mais pesados e desprezíveis insultos eram dirigidos individual ou coletivamente aos aos escravos. Mãos ansiosas, animalescas, passeavam sem cuidados & intrometiam-se canibais por todos os recantos das carnes franqueadas ao público exame degenerado dos corpos. A ordem para que se ajoelhassem & colocassem as mãos atrás das nucas. Jatos quentes de urina em seu rosto: Rouge sabe que está começando a sonhar seu pesado pesadelo de ferro.
— Agora essas almas infelizes, os recrutas do exército da putaria, vão voar por sobre o rio da passagem da morte até a vida de delícias no inferno: que comecem os lances!, comandou de algum ponto a voz da paquidérmica loira.
As ofertas em voz alta começaram. Um entusiasmado e competitivo, às vezes agressivo, alarido medieval dominou o ambiente. Seguindo alguma ilógica imponderabilidade, cada escravo era, a intervalos,  exibido à frente dos demais. Números significando quantias em dinheiro era berrados com histeria. As cifras cresciam com entusiasmo demente até que, quando não havia superação, Moby Dyke sentenciava: "Vendido para uma noite de total disponibilidade o escravo número..."
Rouge não sabia precisar por quanto tempo se desenvolveu aquele ciclo de fúria psicótica. Apenas teve noção do passar do tempo quando escutou alguns minutos de estranhíssimo silêncio & deu-se conta de que estava sozinha no palco.
— Vamos lá, minha gente: essa joia de cabelos vermelhos ostenta carnes deliciosas capazes de despertar os mais pervertidos desejos sexuais até de um morto agradecido. Mestres da desordem, sacerdotes do medo: sabemos que a verdade não nutre nenhuma simpatia pelo que é simpático, mas dentro desse corpo, é cultivado um jardim selvagem de sacanagens depravadas. O jovem suco das frutas podres, a nata da podridão da nossa melhor sociedade jorra de dentro dessa boceta que sorri com  graça sem graça de mocinha de novela, posso garantir. Ninguém se habilita a ser por uma noite o imperador do porão da total escuridão dessa alma submissa?
O pregão de Moby Dyke não sensibilizava nem a mudez das paredes.
Para a humilhação desse silêncio de desprezo que lhe era gritado no rosto Rouge não estava preparada. Fechou os olhos tentando não chorar e mais uma vez viu o vulto de Lord Lupus dando-lhe as costas, porém, agora, podia perceber que ele sorria irônico.
— O lance mínimo, alguém?
A expressão hesitante de aceitação apenas incomodou o silêncio. Depois eram risinhos indefinidos de zombaria
Até bonito como qualquer amante, porém, sem graça, masculinidade esfuziante com visual de galã de meia idade de filme romântico da sessão da tarde. Nada do que Rouge havia sonhado. Tentou um chicote, mas demonstrou falta de intimidade até para simplesmente empunhá-lo. Passou os olhos por uma chibata & decidiu não arriscar. O paddle, acabou sendo eleito. Para os amadores ou iniciantes é a própria piscina de criança: dá pé pra todo mundo.
Amarrada à cruz de Santo André, apesar de tudo, os peitos inchando, se enchendo de tesão. Experimentaria um clímax intenso ao sentir o corpo contorcer-se, cortado ao meio pela flagelação?
Relembrou, palavra por palavra o que Lord Lupus lhe dissera um dia.
"Quando desamparada, indefesa, corpo nu vulnerável em espera, a consciência é o pior inimigo da fêmea flagelada. Nunca deve permitir que ela se instale. Não deve lutar, apenas piora a situação. Quando o couro do chicote morder a carne deve deixar o fluxo de dor fluir através dela, simplesmente absorvendo os golpes, usufruindo do prazer. Mas isso deve ser feito logo na primeira chibatada, pois é essa, torturante, que queimará para sempre em sua memória, é a que corta para sempre a pele imaculada de sua alma. E depois, gritar, gritar em agonia frenática é tudo o quanto deseja & tudo o que o sádico quer ouvir"
A primeira pancada numa nádega. Apenas a inevitável dor protocolar. Risadas. A outra nádega é premiada com a mesma imperícia. Em seguida, o ombro direito, depois o esquerdo. As gargalhadas explodiram. Ao suco de morango, a plateia daquele circo de horrores respondia catarro. Mesmo de costas sentia a plateia tensa, ofegante, obviamente muito insatisfeita. A frase em uma voz feminina esganiçada em deboche —“"Essa puta de butique é uma vadia de uma cadela hipócrita!"” — detonou os gritos & zombarias, como se ela houvesse quebrado todas as regras escritas e não escritas do lugar.
Não soube o que aconteceu ao galã de brechó de grife, nem quem a liberou do "X".
Agora eram vaias e alguns objetos indefinidos atirados.
Rouge correu cambaleante para o vestiário.
§
— Não fique chateada com ele, é alguém que também acha que pode enxergar seu demônio interior pela segurança covarde de um telescópio, por falta de coragem para encará-lo face a face.
Moby Dyke agora era quase maternal em seu tom.
— Nem se aborreça demais com os outros: animais dominantes sentem o cheiro da mulher que tem medo e, como lobos, se afastam. Não se constrói uma fêmea com coragem de render-se à submissão de corpo & alma sobre as ruínas de uma mulher covarde. A essas, sem entrega na alma, é reservado o destino de purgarem como Anima Sola no purgatório da prática do sexo fácil, que queima mas não consome.
Tentou interromper, mas estava paralisada pela decepção.
— O único  milagre em que acredito é o da multiplicação das trinta moedas da hipocrisia, que venho realizado desde os treze anos usando o buraco que tenho no meio das pernas. E o outro lá detrás também, claro. Submissas não nascem em árvores, embora mulheres como você acreditem que basta pendurarem-se nuas num galho gemendo tesões fáceis de filminho pornô. Elas devem entregar-se incondicionalmente de alma livre, para serem cultivadas desde a semente por um verdadeiro dominador. É perigoso passear cantando nessa floresta, quando não se conhece a canção correta.
Ódio intenso por constatar sua verdade mais secreta tão facilmente adivinhada & exposta por uma completa estranha, Rouge colocou o tanto que pôde do vermelho dos cabelos na tinta do rosto e respondeu com fúria recalcada que, se quisesse ouvir conselhos de vovózinha o teria feito na idade correta. Resoluta estendeu a mão & recebeu de Moby Dyke o rolo de filme.
A loira gorda colocou toda a compaixão possível na voz, enquanto se retirava gargalhando.
— Por que a famosa Rouge não experimenta usar o sadomasoquismo como tema em suas fotografias? Pode ser que ajude.!
Automatismo bêbado na rapidez para se vestir, Rouge decide rejeitar a comodidade e a segurança e elege caminhar lado a lado com sua decepção pelas calçadas noturnas de pouca gente até encontrar um táxi.
Na esquina, três cachorros excitados rosnando dentes ameaçadores cercam uma cadela assustada. Crianças da noite brincando de humanos, pensa. Só então dá-se conta de que ainda está mascarada. Joga o disfarce na calçada. Atraídos pelo brilho dourado, os cães se aproximam, cheiram, desprezam sua máscara & voltam a assediar a cadela.
A explosão de lágrimas é abundante.
O táxi é magia que acontece quando, mesmo sem crer, mais precisamos.
§
Indefinível estranha criatura, nua, cabelos desaparecidos na vermelhidão da lâmpada da câmara escura. Não podia culpar totalmente a loira: afinal, faltara-lhe o que fotografar. Escolheu o shot mais aceitável: nada do enlouquecido desenho de hematomas e vergões que idealizara. Apenas quatro ridículas, tímidas caricaturais marcas simétricas, mas, ainda assim... marcas.
Amanhecendo.
Do rádio no quarto da empregada ouve a voz de Dalva de Oliveira: "Que será da minha vida sem o teu amor/Da minha boca sem os beijos teus/Da minha alma sem o teu calor?/Que será da luz difusa do abajur lilás/Se nunca mais vier a iluminar/Outras noites iguais?/Procurar uma nova ilusão não sei..."
Não, não vai querer o café da manhã agora. Algo ainda a fazer & depois um banho.
Transfere a foto para o computador, anexa-a ao correio eletrônico de Lord Lupus & a remete preferindo calar legenda, lembrando o cinismo ácido do dominador: "Uma mulher fala mais do que mil palavras, mesmo quando consegue pronunciar apenas uma".
A água na temperatura exata não lava a inquietação nem aquece a insegurança.
Ainda enxugando-se ouviu o alarme de mensagem recebida.
Os dedos gelados da mão do medo apertaram-lhe o pescoço & Rouge não conseguiu respirar ainda por um tempo, depois de ler a mensagem: "Teu corpo desperta apetites, mas lobos não comem carne mastigada; isso é cardápio para vira latas famintos de sarjeta".
Cambaleante, caminhou em direção ao espelho, mirou-se nua e no reflexo enxergou um vulto sombrio ao mesmo tempo estranho e familiar ao lado de suas carnes despidas brilhando na pouca iluminação do quarto.
Levou a mão até a boceta, acariciou-se por um minuto inútil, a umidade de fêmea não a visitou.
Rouge percebeu que nunca mais, como havia feito até ali, conseguiria fingir-se feliz à vida com a mesma naturalidade com que se contentava com insuficientes orgasmos de ocasião & que fingia tão intensos a todos os amantes a quem, com tanta facilidade, abria as pernas.
Nunca encararia o seu demônio interior, embora ele continuasse queimando como um incêndio de frustração dentro dela.
Passou os dedos em desconforto pela cabeça vermelha.
O tempo vencedor como sempre.
Talvez a hora de deixar os cabelos mostrarem a sua cor real.

3 comentários:

  1. Master
    Um grande prazer sua visita ao meu blog. Retribuo com satisfação, principalmente pela oportunidade de encontrar alguém à minha altura. Apreciei muito suas narrativas, diferentes do que escrevo, mais detalhadas e precisas, muito excitantes e estimulantes. Manteremos contato com certeza, pois muito temos em comum e mais ainda a trocar e criar. Saudações sádicas e beijos inusitados.
    Mariangela

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  2. ... so good contar com tua presença & estímulo... tks... kisses... saudações em S&M... A Carne Sorri Na DOR

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  3. Irresistivel uma segunda mensagem, num domingo vadio, depois de algumaação, voce sabe do que eu estou falando querido Master. Entre uma e outra entrei no PC e resolvi te visitar outra vez. Em ação e, curiosamente pensando em minha proxima carta.

    Saudações sadicas, beijos perigosos como gostamos

    Mariangela

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