segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A casa da Mulher Vermelha

Foto: Muffia

 

 

“Há um lugar em Nova Orleans
Chamado a Casa do Sol Nascente
Que tem sido a ruína de muitos garotos ingênuos
E Deus sabe que eu, há muito tempo, fui um deles
Oh, mãe, diga a seus filhos
Para não fazerem o que eu fiz
Desperdiçar a vida em pecado e tristeza
Na Casa do Sol Nascente”
(“The House Of The Rising Sun”)

Era para ser apenas outra sexta-feira óbvia.
Turma de encontrar em boteco, na boca da noite depois do trabalho para jogar conversa mole fora.
Assalariados de médio para baixo sempre com mês sobrando no ordenado. Nenhum especialmente boêmio, até porque dinheiro para dificilmente restava. Mas quando sobrava, ia-se, só ou em grupo. Afinal, de vez em quando, todos precisavam “trocar o óleo”.
Nesse cenário, coração fedendo a sangue suado da Boca do Lixo, conheci o lugar.
— Vamos no “611” da Rio Branco mesmo.
— Ôrra meu, de novo?
— E daí, a gente sempre vai: é só subir a escada e em qualquer andar, em qualquer porta que abre tem mulher dentro.
Catso, acho que já conheço todas as putas daquele prédio. Só de gonorreia peguei duas lá.
— Sem contar que aquilo anda cheio de uma baianada do cacete ultimamente.
— Eu vou no “La Licorne”.
— Qual é, meu, ganhou na loteria?
— No bicho: deu veado na cabeça.
— É o que mais dá nessa terra ultimamente
As gargalhadas estrelaram coloridas de artifício.
— Hoje ouvi uns bacanas lá do serviço falando de um lugar novo aí todo cheio de coisa diferente pra rico.
— E o que tem de tão diferente? Boceta cheira tudo igual.
— Sadomasoquismo.
— Que porra é essa?
— É aquele troço de gente esquisita de roupa de couro, um dando chicotada no outro.
— Tô fora, meu: isso é coisa de tarado.
— Sei lá, bacana gosta de coisa extravagante.
— E tem quem paga pra apanhar? A polícia come pobre na porrada de graça.
Mais risadas. Já um tanto molhadas de cerveja.
— Onde fica essa porra?
— Na rua do Teatro de Arena. Eles esqueceram um cartão em cima da mesa do café.
— Deixa eu ver: “Argentinum Astrum”? Argentino é tudo filho da puta!
— É Latim — falou um que tinha tempos de coroinha na infância — Quer dizer “Estrela Prateada”.
— Só burguês decadente mesmo para gostar de um lugar com esse nome complicado metido à besta. Muito pretensioso para ser utilizado por bêbados, putas e demais animais da noite — esse gostava de se pensar intelectual do desespero esquerdizoide.
— Pra ser mais chique devia ser “Silver Star” — disse outro que imaginava ser mais moderninho fingir que sabia Inglês.
— Sei lá, eles falavam que era “A Casa da Mulher Vermelha”.
“A Casa da Mulher Vermelha”? Desse lugar meus tios já me falavam há mais de quarenta anos — comentou um bem mais velho, tropeçando língua enrolada a caminho do banheiro imundo — Mas eu nunca fui nem sei onde fica.
— Deve ser caro pra caralho.
— Eles diziam que é coisa fechada. Super discreta.
— Eu vou torrar a grana do bicho com as putas da alta da Laura lá no “La Licorne”. Quem vai?
— A gente não tá com tudo isso, meu. Vamos no “611” mesmo.
— Você não vem?
A grana que eu havia desviado do caixa da empresa estufava o bolso da calça. Já que o risco da demissão na segunda era quase certo, melhor gastar o dinheiro em grande estilo.
— Tô morto. Vou pra casa dormir.
Em São Paulo a gente tem um infantiloide desleixo carinhoso com essas coisas. A Teodoro Baima, ao contrário do que se pensa/diz, termina na Consolação e, com seu único estreito quarteirão escuro, começa naquela rua da qual ninguém nunca lembra o nome.
O barulhento “Redondo” na esquina em frente ao Arena. Depois do boteco pé sujo um pouco adiante à direita, os nada novidadeiros apagados prédios velhos de sempre.
Tarde da noite.
Mas o destino nunca dorme.
Ombros garoados caminhei passos friorentos em direção ao começo.
O néon brilhando irritantemente branco, quase prata, testemunhava sem engano: “Argentinum Astrum”. Agora lembrava: o prédio era uma igrejinha antiga, abandonada desde que me conhecia por gente.
— Prazer em vê-lo. Já era esperado.
Apesar do verdor cômico (não podia ser pintura, a pele dele era mesmo daquela incrível cor verde), assustador: não só pelo monstruoso aspecto de criatura de Frankenstein, mas pelo próprio tamanho, gigantesco, mesmo para alguém de boa estatura como eu. Dois metros e tanto, alto como um deus de pedra. E lá em cima, ridiculamente desproporcional, uma minúscula cabeça aquilina.
— Nunca estive aqui. Nem sabia que vinha. Como “era esperado”?
O cara com cara de ave de rapina silvou estranho quase como se sorrisse:
— Sou Aiwass e lhe dou as boas vindas.
— Aqui é “A Casa da Mulher Vermelha”?
— Não é o que diz o luminoso. Mas importa o que pedem os corações dos que chegam. Queira entrar, por favor.
Iluminação indefinível. Porém, estranhamente, ao mesmo tempo em que o ambiente parecia muito escuro, existia uma luminosidade brilhante de cor indescritível que permitia enxergar tudo em volta — apesar das nuvens enlouquecidas da fumaça dos cigarros — com a clareza demente da consciência de um alucinado. A música era algo hipnótico, quase inaudível, que escorregava insinuante ouvido adentro fazendo o sangue dançar leve, ritmado, pelas veias do crânio.
— O nosso desejo proibido é como um anjo-fera em emboscada, com caninos arreganhados, saltados para fora da boca salivosa, à espreita, pronto para atacar a nossa sanidade. É uma confissão feita para o mais fundo da alma, sem qualquer intermediação moral ou censura.
Sorria absolutamente nua à minha frente.
Branca, era toda branca: cabelos, unhas, pelos púbicos, olhos, toda a carne, como se houvesse sido mergulhada numa lata de tinta.
Apesar do aspecto exótico, uma intrigante beleza de um mistério inquietante. Um corpo maravilhoso, perfeito de sonho. Linda como nenhuma que jamais houvesse visto, exalava um salgado aroma de excitação de fêmea.
— Eu sou Alva, principal entre as Áureas, as brancas, as mais brilhantes. Se quiser, posso te apresentar a casa.
— Não estou acostumado, não conheço, nunca vi essas coisas.
— Paciência é para os que não têm ambição. Mas você deve jurar jamais revelar a ninguém qualquer detalhe do que vir aqui dentro, senão o castigo o atormentará enquanto viver.
A carne, feminina e masculina, despida ou quase, brilhava em todos os cantos contorcida em meio a gritos de transpiração gordurosa de prazer, ódio, gozo, medo, tristeza, algazarra de lamentações, de gemidos de tudo e de todos, sorrisos de deboche ou de agradecimento, lágrimas iguais e diferentes.
— O que essas pessoas fizeram?
— A simples presença delas aqui demonstra que elas sentem ou têm alguma culpa. E quem não tem nenhuma vem aqui para encontrar alguma. Mas tudo o que verá aqui visa antes à conversão e não à punição.
— Conversão?
— O sofrimento, ao contrário do que pensa a maioria, não é apenas o caminho de busca que da dor leva à contrição. Pode ser também a maravilhosa e infinita estrada de tijolos dourados que leva à liberdade de consciência. Somos como pastores, não torturadores ou carrascos. Podemos começar?
O coração engasgado na garganta.
Mas, cedo ou tarde, todos têm de enfrentar seus demônios interiores.
“Argentinum Astrum” é um lugar acessível apenas a privilegiados. Muitos são chamados, poucos escolhidos para usufruírem o êxtase único desse santuário do sexo. É o templo do gozo sagrado que proporciona somente aos verdadeiros de alma a oportunidade de saborearem as delícias de todas as cores do prazer.
Então eram mulheres negras. Criaturas com todas as partes do corpo nu coloridas numa mesma tonalidade brilhante:- o mais profundo negro. Ajoelhadas, deitadas, arrastando-se pelo chão como animais em contorções inacreditáveis, rostos esfregados com violência contra o solo, línguas lambendo sedentas o piso.
— Esse é o recanto das ebúrneas, as que se dedicam aos jogos de humilhação, à abjeção do comportamento mais primitivo de submissão vinculado à mais rasteira animalidade.
Depois eram mulheres amarelas com corpos torturados por filetes de cera derretida que escorriam generosos de velas sobre suas peles. Havia um estranho aroma quando ferros em brasa ou pontas de cigarro deixavam marcas de queimaduras naquelas carnes quase douradas.
— As amáras são peritas em se ofertarem às dores dos perigos do mais sofisticado sadismo.
Agora eram mulheres nuas impressionantemente azuis sendo mergulhadas à força em tanques de água, mantidas no fundo quase até morrerem.
— No território das lazúlis explora-se o orgasmo prolongado pelo desespero, na fronteira com a morte pela ausência de respiração por afogamento ou por asfixia.
Acima do chão, como se voassem, corpos roxos suspensos do teto, amarrados das maneiras mais intrincadamente enlouquecidas eram supliciados como num circo de horrores.
— As purpúreas submetem-se à intensa sensação de entrega pela impotência, ante a vulnerabilidade total trazida pela imobilidade.
— Eu nunca imaginei...
— A imaginação na busca da realização do prazer total não deve conhecer limites.
Aqui todos os corpos nus eram como o de Alva: leitosamente brancos.
— Minhas irmãs, as áureas.
— E qual é a especialidade das mulheres brancas como você?
— O branco é a soma de todas as cores: estamos capacitadas a responder a qualquer exigência, a todos os desejos.
Beijo pegajoso de língua elétrica, embrulhando seus braços ao redor de mim. No abraço corri as palmas das mãos pelos peitos firmes. Os bicos endureceram como se fossem de pedra. Pelos olhos das pontas dos dedos podia enxergar perfeitamente cada dobra aquecida da pele branca e lisa das nádegas sorridentes, generosamente oferecidas. Com o dedo abusado sondei o rego e enfiei fundo e decidido no pequeno buraco quente. Na ponta de meu dedo o contorno de cada prega daquele cu arregaçado, engordurado de gozo. As membranas internas de seu rabo respondiam inquietas a cada estímulo de meu dedo nervoso.
Sei lá por qual razão. A vontade veio, só isso. Comecei a esbofeteá-la com fúria de maníaco.
Caída no chão, pernas arreganhadas. Racha inchada pelo prazer demente. Boceta reluzindo estilhaços de luminosidade refletindo com umidade as luzes brilhantes do globo de cristal no teto. Sorriso estranho que nunca vi.
— Me use para seu prazer, da maneira que quiser.
Lenta como cobra desenrolou-se até ficar de bruços.
A chibata horrenda chegou à minha mão como aparecida do nada.
Não sei de onde tirei perícia. O couro estapeava firmemente as bochechas de sua bunda.
Dor, prazer, ansiedade, ou qualquer outro intenso estímulo. Emoções. Do fundo de sua carne o aroma de dor prazerosa entrava intenso pelas minhas narinas.
Todo golpe ardente correspondia a um grito que parecia de sofrimento. Retorcida, gemia a cada impacto das delgadas tiras de couro, mas eram reações de prazer.
Seus gritos eram de dor genuína.
Incendiadas faixas vermelhas foram se materializando deliciosas em sua pele branca. A pálida carne quente, agora vermelha, parecia estar pegando fogo. Sua bunda era uma adorável luminosa sombra rosa avermelhada naquela iluminação.
— Isso é muito bom, não pare, não pare, nunca!
Ofegava e gemia. Soluços alternados. Choro se transformando em gargalhadas dementes de prazer. Carne trêmula. Fluido pegajoso escorrendo de entre suas pernas.
Minha respiração pesada, apressada.
Uma onda quente de excitação subia do meio de minhas coxas, passeava calorosa por minha espinha e estourava desavergonhada em meu rosto pingando suor.
Encolhi-me o quanto pude, mas ela engoliu. Meu pau desapareceu dentro de sua pequena boca de lábios brancos e estourou um gozo de inundação. Gulosamente infantil caçou com a ponta da língua a gota brilhante de gosma branca que escapava pelo canto esquerdo da boca, ameaçando escorrer para o queixo e degustou o sabor da porra com uma perversidade moleque no sorriso.
Como era possível sentir tanto prazer em ferir alguém? Por que nunca tinha pensado numa coisa dessas como forma de obter satisfação sexual?
Suas carnes brancas agora brilhavam gotejantes e vermelhas na fria luz esbranquiçada da boate.
— Você está toda machucada, sangrando.
— Isso não o agrada?
Misteriosa e lentamente, à minha vista, todos os vergões, hematomas, contusões, lacerações, cortes, a sangueira toda, tudo desapareceu. A pele branca de seu corpo estava de novo impecavelmente linda, brilhando desejosa.
— Está gostando de conhecer as delícias da casa de todas as cores do prazer?
— Mas eu não vi nada vermelho aqui dentro.
— Tem razão, aqui nada é ou pode ser vermelho: somente ela e o sangue do prazer, que também dela provém.
— Ela quem?
Um silêncio de momento, depois as vozes em coro:
“Saudemos o eterno novo com nossos gritos de desvario, pois o tempo da concórdia, do consenso do falso moralismo está terminado. É chegada a hora do novo testamento do qual damos testemunho com a suprema decadência de nossa total depravação. Nossa senhora, Vermícia Rainha”.
Na frente o gigantesco cara verde com cabeça de pássaro; depois um indescritivelmente desordenado e maravilhoso cortejo sensual de mulheres nuas de todas as cores (brancas, negras, amarelas, azuis e roxas); ao final, ela, magnífica: grande, muito grande sem ser gorda, vermelha, incendiada da cabeça aos pés, uma visão única e com três, três magníficos e apetitosos seios.
A repetição monótona do mantra continuava hipnótica: “Saudemos o eterno novo com nossos gritos de desvario, pois o tempo da concórdia, do consenso do falso moralismo está terminado. É chegada a hora do novo testamento do qual damos testemunho com a suprema decadência de nossa total depravação. Nossa senhora, Vermícia Rainha”.
Não percebi, mas todos no ambiente estavam ajoelhados encarando a mulher vermelha em adoração.
Todos... menos eu.
Eu parecia ser o centro das atenções. Apesar da iluminação incerta, podia perceber cada olho de cada pessoa grudado em minha pele. Conseguia ouvir risadinhas dementes, rápidas, arremessadas contra mim.
A voz sanguínea interrogou com superioridade:
— Quem é esse que se atreve a manter-se em pé ante mim?
— Ele ainda não sabe Lady Vermícia, apenas não sabe, Senhora dos Três Seios — a voz de Alva era respeitosa, mas trazia um tom de perversidade, pude perceber.
— A ignorância não serve jamais de indulto à insolência.
Um sorriso pálido de excitação me apavorava acima daqueles inexplicáveis três seios. O deboche que me era endereçado parecia contagiar o ambiente.
— Então, minha pequenina prostituta — ela zombou — nunca viu uma mulher com três seios? É o espanto que te leva ao atrevimento de manter-se em pé em minha presença?
— Eu não tinha a intenção...
— Tudo bem, fique tranquilo. Olhe para eles, olhe o quanto quiser. Eles te agradam? São deliciosos, não? Venha, chegue mais perto para poder admirá-los melhor.
Nada mais, nenhum outro som: apenas a voz dela.
— O direito é o das coisas do corpo. Experimente!
Quente, macio, um sabor de carne feminina que jamais havia saboreado. Suguei como uma criança. Líquido adocicado.
— O esquerdo é o das coisas do espírito. Beba putinha, beba!
Esse era frio, mas estranhamente agradável. Pela minha língua deslizava agora um gosto picante sem ser incômodo.
— O mais importante de todos é esse, o do meio: dele jorra o leite das coisas da alma. Chupe, chupe com vontade, minha criancinha imunda.
Eu estava totalmente fora de controle. Agarrado àquele seio delicioso eu sugava cada gota daquele néctar com a ânsia de um maníaco. A cada gole eu parecia sufocar, mas a vontade de continuar era incontrolável. Meu estômago estava incendiado. Meus lábios pegajosos pareciam grudados à carne do terceiro seio vermelho. Bêbado sem estar.
O empurrão veio espantoso, com força precisa.
Uma pontiaguda unha vermelhíssima espetou-se em minha face direita:
 Você está pronto! Rasteje: para o chão que o lugar ao qual pertence! — ela disse autoritária, sem admitir contestação. Nós te aplicaremos, como manda a lei aos que se desviam, a humilhação como pena para expiação da tua infâmia.
Uma escuridão vermelha tomou conta do ambiente.
Réptil calafrio rastejou por minha espinha abaixo, quando ouvi a gargalhada debochada em meu ouvido.
Assim começou.
Sem dúvida, ela tinha total controle da situação.
Nenhuma chance de fuga.
Tentei protestar, mas fui imobilizado por um grupo de mulheres de todas as cores(brancas, negras, amarelas, azuis e roxas) de modo a permanecer indefeso e sem reação durante toda a provação que me aguardava dali para a frente. Mantido deitado de bruços com firmeza contra o piso, o mármore frio do chão mordia a pele de meus joelhos. Minhas calças foram arriadas e depois arrancadas com perícia e violência. Logo estava totalmente despido.
Surpreendido pelo primeiro açoite. O couro da chibata despencou raivoso instalando um dolorido caminho de chamas em minhas costas. Trinquei os dentes. Lágrimas começaram a se formar em meus olhos. Assustei-me com o volume do grito que lancei para o alto e que se perdeu no teto entre as luzes e o som atordoante da música. A recompensa foi a intensificação da força dos golpes. Eram mais espaçados no início. Ganhando velocidade lentamente, passaram a vir mais depressa depois.  A força aumentou gradualmente. A Mulher Vermelha de Três Seios mantinha o ritmo demoníaco do espancamento como se regesse uma sinfonia alucinada. O que até ali parecera um espetáculo de maravilhas e delícias transformava-se agora em um teatro de horrores.
Bobagem pensar em clemência.
A voz de Alva estranhamente alta em meu ouvido:
— Não se preocupe. Abandone-se à purgação: à dor se seguirá o prazer.
Apesar da música que continuava ensurdecedora, os únicos sons que conseguia ouvir eram o estalar cadenciado e ininterrupto do couro e os insultos dela, me chamando de escravinho sujo, homenzinho ridículo, desprezível pedaço de carne, repelente saco de pancadas e outros xingamentos.
Pernas arreganhadas, ela instalou-se em frente ao meu rosto:
— Nunca vi uma carne tão branquinha que ficasse vermelha tão depressa. Você vai ser a minha delícia pelo resto da noite. Me limpe! Lamba! Chupe todos os sucos de minha boceta!
Eu não queria, mas impossível não chorar de dor, as lágrimas insistiam em sair. Era doloroso e não era ao mesmo tempo. A dor e o prazer se sucediam numa alternância maluca.
Saliva, suor, meleca de fêmea tudo misturado ao medo em minha língua.
Olhos brancos gelados que pareciam olhar diretamente para dentro de minha alma, a respiração fervente de Alva queimando em minha nuca, enquanto ela continuava a recitar em meu ouvido:
— Você nunca vai se esquecer disso em sua vida. Muitos têm medo de encarar essa verdade, de tentar aprender a luxúria desses passos a mais, e mais: de gostar e gostar para sempre e de jamais poder se livrar dessa vontade que domina a vontade, que se gruda na gente como um vício maligno, que adere no mais fundo de nossa alma como uma tatuagem indelével impossível de ser apagada.
Absurdo de acreditar: agigantado como nunca o vira na vida, meu pau desavergonhado, endurecido como pedra. Transpirando um suor leitoso, Alva me masturbava furiosamente. Duvidava que com tanta dor conseguisse gozar.  Mas com duas rápidas e apertadas ordenhadas de sua pequena mas decidida mão branca, Alva com perícia apontou meu pau em direção ao peito da Mulher Vermelha e me fez esporrar abundante sobre o terceiro peito, o do meio, deixando-a coberta de gosma, escorrendo porra, minha porra.
Foi como o êxtase da agonia.
Levantei cambaleante, água nos olhos, o pênis chorando as últimas lágrimas de porra gotejando preguiçosas. O corpo retorcido como o de um boneco de trapos sangrava/doía em vários pontos, coberto por marcas, vergões, equimoses, chagas, contusões, machucaduras e todo o inútil repertório de bula de remédio repleto de palavras diferentes para definir coisas parecidas. Parecia uma patética imagem de Cristo de procissão de interior em Semana Santa.
Uma gargalhada de escárnio espalhou-se pelo ambiente. Riam todos os que assistiam o meu tormento.
Ódio com gosto de sangue raivoso na língua.
— Chega! Vocês são doentes. Loucos todos vocês, loucos!
— Loucos nós, minha putinha? — o tom de desprezo na voz da Mulher Vermelha era aterrorizante — Você desmanchou-se em excitação ao assistir a toda espécie de tortura que viu praticada contra os outros. Não fez questão nenhuma de esconder cada instante de prazer que experimentou ao espancar Alva. E apesar da gritaria, parece ter usufruído como poucos novatos toda a delícia que conseguiu extrair de seu suplício.
A ironia esbofeteou-me ao som das risadas que agora eram insuportáveis.
— Vá tomar no olho do seu cu! Você não passa de uma puta degenerada, uma aberração com esses seus três peitos!
De repente, o silêncio ensurdecedor.
A voz de Lady Vermícia veio encharcada de ódio vermelho:
— Seu insolente falso moralista! Esqueceu do que Alva lhe disse quando entrou aqui? Foi dada a você a oportunidade que a poucos é concedida de gozar as delícias dolorosas dos pecados que ainda se vai cometer, de enfrentar seus medos e admitir seus sentimentos, de encarar de frente teus mais secretos desejos proibidos e vê-los como uma confissão feita para você mesmo para o mais fundo de sua alma, sem qualquer intermediação moral ou censura. Mas você falhou, deixou-se dominar pela covardia fácil. Aiwass jogue esse verme na rua!
— Não encoste a mão em mim seu filho de uma puta!
A fúria da coragem que arrumei no mais fundo de meu medo espantou o gigante verde que olhava apalermado enquanto eu corria feito um desesperado em direção à porta.
O baque contra a lateral da viatura de polícia me fez chorar quente gemendo baixinho.
— Tá louco amigo?
— Pelo amor de Deus, seu guarda, me ajuda. Se aquele gorila verde me pega ele me mata!
— Gorila verde?
— É, o porteiro, o leão-de-chácara daquela boate, daquele bar, daquela casa lá, sei lá.
— Que boate, cara? Aqui não tem boate nenhuma. Isso aqui é uma rua residencial.
Tinha de haver uma explicação para... eu estar exatamente em frente ao prédio onde moro, num bairro distante do centro, da Boca do Lixo.
O policial me olhava meio abestalhado enquanto descia do carro e me pedia os documentos.
— A noite de farra foi da pesada, hein? Tomou quantas, amigo?
Não respondi. Estava ocupado, boca aberta de espanto, procurando pelo prédio da igrejinha com o néon piscando branco: “Argentinum Astrum”.
Liberado em seguida: os tiras não estavam a fim de se encherem o saco com um bebum “xarope”.
Sonâmbulo, pernas tremendo, subi as escadas do prédio. Meu reflexo no espelho da parede da portaria era lastimável.
Arranquei as roupas amassadas e suadas — roupas?, mas eu estava nu quando fugi de lá! O sofrimento que experimentava era terrível, mas a imagem do espelho não mentia: meu corpo estava intacto, nenhuma marca. Porém, eu sentia individualmente a dor de cada golpe que me fora dado.
Me joguei de costas na cama, fechei os olhos e... não dormi.
No dia seguinte voltei à Teodoro Baima. O prédio da igrejinha estava lá, abandonado, decadente, quase em ruínas como sempre conheci. Nem sinal da Casa da Mulher Vermelha. Todos a quem perguntei me encararam como se falassem com um doido.
Mais duas noites de dor insuportável sem dormir. Na madrugada da segunda o impulso veio do desconhecido e me masturbei: a punheta milagrosamente eliminou a dor e dormi por algumas horas.
No trabalho todos comentaram minha aparência epidêmica. Devolvi o dinheiro e meu crime não foi descoberto.
Consciência, o mais terrível dos vírus que nos mata a cada dia em que estamos vivos, mas do qual só no liberamos com a morte. Não há cura para a consciência. “Sua consciência será sua tortura”, Deus deveria ter dito ao homem quando o expulsou da felicidade.
Por um tempo foi uma obstinada tentativa honesta de querer esquecer de tudo aquilo. As masturbações já não faziam efeito: a dor, a ansiedade voltavam a atacar decididas como o fantasma de uma mulher de corpo totalmente branco como se houvesse sido mergulhada numa lata de tinta. Encontrei mulheres que pude espancar. Submeti-me a outras que me supliciaram. Inútil. A necessidade de retornar àquele lugar mantinha-se aflita.
Depois...
É sempre assim: a carência do passado mora na imaginação da gente em forma de lembrança sonhada.
Dois anos? Dois anos e meio já? Três?
Sei lá, venho procurando durante todo esse tempo.
Tinha certeza de que ficava naquela rua. Depois de um tempo, dúvida: talvez tenha se mudado para qualquer outra dessas daqui da Boca, escurecidas fedendo a asfalto chovido. Ou quem sabe para outra em outro bairro?
Não pode ter sumido no ar.
Nas noites de São Paulo, em todas as estações do ano, por esse tempo todo, no abafado de quando não chove, na garoada friagem de quando esfria, no fedor úmido de chuva asfaltada.
Procurando sempre. Firme. Sem desistência.
Pior foi hoje.
Após mais uma noite se sono intranqüilo, acordei imutável em minha ridiculum vitae.
Uma pichação no muro do terreno baldio em frente ao meu prédio: “A Casa da Mulher Vermelha” e uma seta vermelha malucamente rabiscada em spray apontando para a esquerda.
Mas para a esquerda não tem nada, só o muro no fim da rua.
Moro numa rua que não tem saída.
Nem eu.
O destino nunca dorme.
Com passos decididamente covardes, o coração dando pontapés no estômago, vou andando para a esquerda, em direção ao muro no fim da rua.
 

3 comentários:

  1. EPITÁCIO PESSOA!!! este o nome da rua! a rua onte termina ou começa a teodoro baima, rua do arena. dia destes, andando pelo centro, fiz questão de mudar o itinerário só pra ver o nome da bendita, que isto tava azucrinando a minha cabeça, rs... desculpe, se quebrei o 'mistério', mas fui lá conferir...

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  2. Maravilhoso blog...adorei!!!
    Vai gostar do meu tambem,da uma passadinha por la.
    http://segredosdapretinha.blogspot.com.br/
    Desde ja agradeço.
    beijinhosss

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    1. ... tks pelo carinhoso comentário...
      ... já dei uma lida em teu blog... congrats!!!...
      ... kisses...
      ... saudações em S&M...
      A Carne Sorri Na DOR

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