terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Síndrome de Estocolmo


Post tenebras spero lucem

(Atrás das trevas espero a luz)
(Jó, XVII, 12)


Nua.

Tremia.
Além do frio e do medo, a fraqueza.
Feria a pele do braço. O espaço entre as barras meio enferrujadas da jaula era muito estreito.
Arranhou-se.
Sangue.
Sugou a ardida gota vermelha de sabor adocicado.
Com um esforço conformista — a algema em seu tornozelo mordia a carne, quase impedia seus movimentos — conseguiu alcançar a vasilha com água; um gole pequeno, enquanto estudadamente ruminava o pastoso pedaço de pão velho que enojava seu estômago. Repulsivo. Na última vez, por pura maldade, ele havia urinado sobre o pão antes de ir embora.
Tinha sede e fome, mas precisava evitar, o quanto conseguisse suportar. O cheiro azedo de suor, fezes e urina (seu suor, suas fezes, sua urina) misturado ao transpirante odor de umidade impregnado nas paredes e no chão sugeriam um ácido aroma de tudo e de nada ao mesmo tempo.
Nesse instante, como se um filme em velocidade ensandecida fosse exibido na mais escura sala de sua alma, recordou todos os momentos significativos de sua vida: da infância rica e feliz até quando foi raptada. Impensável admitir que, em dias, de dama bem sucedida na sociedade, fora transformada num pedaço de carne, o corpo manipulado com total bestialidade, submetida às mais sórdidas práticas sexuais e às mais depravadas ações físicas que enojariam a mais desclassificada, calejada e insensível prostituta de calçada.
Absoluta degradação.
Havia sido estuprada varias vezes, em todos os orifícios do seu corpo, nas mais alucinadas e inimagináveis posições (ele sempre tinha a insolente crueldade de posicioná-la arreganhada, totalmente acessível, para usufruir de seu corpo sem obstáculos), obrigada a práticas abjetas, ofendida pelas mais repugnantes obscenidades: seu sexo agora era uma “boceta podre”; seu ânus um “cu sujo e fedorento”; seus seios, “tetas de vaca nojenta desqualificada”.
Ela mesma não mais mulher: apenas um pedaço de carne desfrutável.
Dois dias? Três? Mais, sem dúvida. Quantos? Como ter certeza? A luminosidade indefinida do ambiente embaralhava a noção de tempo. Dia? Noite? Dormir apenas quando o cansaço dominasse. As costas doloridas, as pernas meio entorpecidas pela posição semifetal. Ânus e vagina arreganhados, arrombados pelo monstruoso consolo fixado na extremidade da haste de madeira que, ameaçador, encarava-a encostado na parede, como um lembrete permanente da presença dele.
Repugnante.
O asqueroso gosto que parecia jamais iria desprender-se de sua língua também não permitia esquecer.
Perversão imunda.
Arriou as calças, defecou abundantemente em frente a seu rosto, não se limpou e a pauladas obrigou-a a lambê-lo. Sabor de merda merdosa, não queria pensar nisso agora.
Escovar os dentes? Banho? Cômico pensar nisso agora.
Não se atrevia a resistir ou desobedecer. No início tentou implorar por clemência, mas tudo piorou. Aprendeu que com ele isso sempre era possível.
Jamais pensara em coisas como masoquismo ou submissão. Porém, naquela situação, um único pensamento: tudo o que conseguisse suportar só podia fortalecê-la.
Confusa.
Estranhava. Porém, secretamente, inquieta, mais odiava e ansiava por cada terrível e vergonhoso instante que viria.
Depois do choque dos primeiros dolorosos dias, dos mais porcos atos de escatologia e deboche sexual, a raiva e o nojo deram lugar ao desejo de apenas esperar que ele se cansasse de tanta sujeira e desejos de depravação e a libertasse.
Afinal era assim que agia com suas vítimas. Não era um assassino.
Parecia notícia de jornal produzida para enganar fome de estômago de pobre.
Mas o Maníaco Mascarado existia.
Ruído metálico do outro lado da pesada porta de madeira.
O cadeado sendo aberto.
O cheiro de medo tomou conta do ar.
Lamento agudo metálico do enferrujado das dobradiças da pesada porta de madeira.
A luminosidade acovardada não consegue espantar a escuridão mortiça. O negro é a cor do escuro. É como um veludo que arranha a pele em vez de acariciar felino.
Tornara-se familiar.
Pelos buracos da máscara de lã preta podia ver que os olhos claros dele ainda eram chamas de selvageria que brilhavam com a maldade do gelo.
Travo amargoso de adrenalina na língua.
Sua mortificação ia recomeçar.
A respiração acelerada confessa o medo.
Soltou a algema, abriu a porta da jaula e com cínica brutalidade arrastou-a para fora pelos cabelos.
A rouquenha voz indefinida abafada pela máscara.
— Como a rainha das socialites se sente cheirando igual a um ser humano? Tem uma musiquinha engraçada por aí que diz: “Eu sei que a burguesia fede, mas tem dinheiro pra comprar perfume”. Acho que o autor estava pensando em prostitutas endinheiradas e alienadas da sua laia.
— Não tenho culpa por ter nascido rica.
— E parece nunca ter se sentido envergonhada por ostentar essa riqueza com cinismo debochado nesse país miserável.
— Essa sua lógica pervertida é pura bobagem distorcida. Você não é um justiceiro. No máximo um pobre recalcado, um tarado, um psicopata, um bandidozinho pé de chinelo como outro qualquer.
— Mesmo? E você fica molhadinha e melada desse jeito com qualquer bandidozinho pobre e pé de chinelo, sua puta?
Com habilidade, três dedos enormes passaram a dançar harmoniosos e impacientes pela sua umidade interior. A feminilidade do aroma de fêmea que exalava do vão de suas pernas tomou conta do ar despertando nele os mais secretos instintos animalescos.
— Manipular um corpo trêmulo de medo transmite uma sensação quase que de divindade, de afrontar o que é interditado à maioria, que beira ao desafio do pecado original: beber do cálice da dor.
O clitóris estava enrijecido. Queria evitar, não conseguia. Sentiu o pequeno pedaço de carne sensível ser esmagado com força numa perversa torção entre o indicador e o polegar da mão direita do homem. Apenas grunhiu. O grito de sofrimento ficou engasgado na garganta. Lágrimas doloridas escaparam pelo apertado dos olhos de sua careta de dor.
Foi um orgasmo selvagem, sem dúvida. Mas uma generosa e quente golfada de urina encharcou a mão dele.
Não pôde evitar.
Sem aviso ele começou a chutá-la, procurando deliberadamente atingir sua vagina e seios, estranhamente jamais o rosto que, embora indefeso, estivesse sempre exposto em agonia. Inúteis suas contorções para tentar se proteger. O interior de seu corpo sofria tanto quanto o exterior. Seu estômago doía tanto como se houvesse engolido a própria dor em exageradas bocadas, sem mastigar. Os pontapés internos a feriam tanto quanto os externos aplicados em seu ventre. A ânsia de vomitar era irresistível, mas era impedida pela ameaça de que, sem a menor hesitação, ele a forçaria a engolir o vômito.
Era o controle do medo pelo terror.
Ele pisou em seu rosto.
— Sua porca! Eu estava entediado, só brincando com essas carnes de rameira de classe rica. Mas agora você merece ser machucada de verdade, exemplarmente castigada por ter feito uma coisa tão suja sem a minha permissão.
Depois de ter enxugado a mão em seus cabelos, trouxe de dentro do bolso da calça uma caixinha de metal amarelo amedrontadoramente reluzente. Era de ouro. Tampa aberta. As agulhas de tamanhos diversos repousavam cuidadosamente espetadas no veludo negro, intimidativas e douradas. Também de ouro.
O desespero de seu olhar anunciava a antecipação de seu sofrimento.
Ele afagou seu peito com volúpia demente. As mãos começaram a moer seus seios. A língua ficou atenciosa com as auréolas rosadas de seus mamilos sensíveis.
A primeira agulha enfiada vertical no mamilo assustado.
Deus, como dói!
— A dor é a mesma, mas todas são diferentes. Cada uma grita num tom diferenciado. Choram em lamentos absolutamente individualizados. Tenho um gravador ligado lá atrás, sabia? Há tempos planejo compor uma sinfonia. A Sinfonia da Dor. Gosta da ideia? Estou pensando em fazer de você a solista da minha sinfonia. Não será uma grande honra? Vai depender apenas de você, de quanto vai durar. Algumas suportaram semanas. Me proporcionaram imenso prazer, devo confessar, antes de se irem.
A segunda agulha entrou horizontalmente pela carne do bico do seio, completando a apavorante cruz dourada.
— Bêbado, quase bêbado, em vê-las sem morrer, mas no limite mínimo da vida. Horas e horas de diversão, elas resistindo no nível mais insuportável da dor e da degradação, sem saber se deviam tentar me agradar para tentarem fugir a seu destino ou se desesperar e entregar-se ao destino que eu definiria para elas. Sublime e encantador dilema para deleite de um sadista. Espero que você não me decepcione. E não se atreva a desmaiar. Pode ser terrivelmente assustador morrer na inconsciência. É desconhecidamente apavorante, mas é da natureza primitiva de todo ser humano desejar, apesar de tudo, encarar a face da morte.
Então ele pretendia matá-la?
Agora era o outro mamilo. Cuidadosamente as agulhas deslizavam perfurando a carne.
Para ele parecia ser extremamente agradável, deliciar-se especialmente com o lento e doloroso processo de introdução das agulhas. Era evidente seu propósito de prolongar ao máximo sua agonia.
Tinha de reconhecer, ia além da simples tara, do desvio da normalidade: ele possuía perícia, era habilidoso, ostentava a mestria de quem sabia o que estava fazendo.
As perfurações ardiam como se estivessem ligadas à eletricidade. As minúsculas gotas de sangue transformaram-se em filetes vermelhos escorrendo lacrimejantes e generosos pelo redondo de seus seios.
— Puro néctar mansamente banhando a ambrosia. O inigualável paladar do sangue destilado pelo medo da vítima umedecendo a carne tenra.
Sedento ele chupou o sangue e aproveitou para morder, mastigando sua carne com fúria animalesca.
Seus agudos gritos de absoluto horror não podiam ser ouvidos por ninguém. Apenas por ele. E pela expressão, percebia que ele se deliciava a cada som de agonia que ela produzia.
Com estupidez separou suas pernas ao limite e de dentro das calças fez surgir o pênis duro engrandecido pela degeneração da cena. Ritmadamente começou a fazer desaparecer e ressurgir brilhante e lambuzado todo o grosso comprimento naquele orifício, a princípio tímido e retraído, que aos poucos ia se expandindo como uma boca gulosa que gritasse em desespero faminto por mais que a sufocassem.
O leitoso jorro melado transbordou pegajoso por suas coxas.
— Sabe que muitas vagabundas milionárias de sua espécie chegaram a me pedir que continuasse a martirizá-las mesmo depois que as soltasse? Estúpidas. O verdadeiro sádico não experimenta qualquer alegria em ter uma escrava disponível. Destrói toda a sofisticação do verdadeiro objetivo do sadismo que é desfrutar o gozo de ferir e humilhar sexualmente uma mulher.
As agulhas agora eram arrancadas com planejado descuido com a intenção de ferí-la mais dolorosamente.
O sorriso enlouquecido permaneceu congelado em seu cinismo quando ele acendeu o cigarro.
Em todos esse tempo havia feito tudo o que ele ordenara. Por que estava sendo ainda mais maltratada? Já nem lembrava por quantas vezes chupara seu pau apesar da repugnância. Bebera litros daquela gosma horrenda e de urina asquerosa esguichada direto em sua garganta. Toda a espécie de objetos que ele sem dó introduziu em seu corpo. Até agora havia sido um brinquedo sexual utilizado nas mais inventivas e obscenas combinações de violência e aviltamento. Um depósito de sêmen e excrementos. Sem oferecer qualquer resistência.
Repentinamente virada de costas não teve como prevenir-se contra a dor lancinante que a brasa do cigarro causou quando foi afundada na carne generosa de sua bunda.
O grito explodiu desesperado.
— Grite, grite muito, cadela desprezível. Porém, fique atenta, pois a realidade não consegue lutar contra essa indesmentível verdade reveladora: a delícia dessa dor e dessa humilhação vai ficar marcada em sua alma para sempre.
Fezes abundantes escaparam desavergonhadas por seu ânus.
Gargalhada sádica.
— Égua cagona, michê de esgoto de privada de puteiro, piranha esmerdeada.
O cinto saiu da cintura e passou a abater-se contra seu corpo. O som chispante do couro cortando a carne. Sua pele parecia incendiada. A flagelação crescia em intensa violência.
Chorava muito.
Berrava querendo pôr os pulmões pela boca afora.
De repente, o silêncio.
— Por que parou?
— Esqueceu da festa, hoje, no Palácio do Governo?
— Nossa, é mesmo. Dessa vez perdi completamente a noção de tempo.
Ele arrancou a máscara do rosto, ajudou-a a levantar-se, beijou-a na boca com ferocidade de gozo e abraçados foram para o banho.
Com descuidada naturalidade feminina enfiou-se com agilidade no provocativo vestido elegante. Vaidosamente passava o caro perfume francês em pontos estratégicos do colo e atrás das orelhas.
Com teatralidade masculina ele vestiu o terno importado e ajeitou com afetação o nó da gravata, estudadamente meio torto como recomenda a boa moda.
Suspiraram confortados ao contato aconchegante com o couro dos bancos do carro vermelho de design insolentemente esportivo.
Depois dos três quilômetros do caminho de terra seguiram suaves pelo asfalto da auto estrada.
— Seus pais vão engolir essa história de que você ficou todo esse tempo incomunicável num spa?
— Pode ficar tranquilo, eu sei ser convincente. Além disso, sete dias a pão e água, merda e mijo devem mesmo ter me feito perder alguns quilinhos.
— Ainda bem que toda a porra que te fiz engolir compensou e não deixou cair teu nível proteico, certo?
Ela gargalhou gostosamente.
— Impossível deixar de me sentir afortunada por ter encontrado um homem com uma mente tão depravada. Ui!
— Alguma coisa errada?
— A queimadura na bunda incomoda um pouco com o balanço do carro, mas uma pomadinha resolve isso logo, logo. Tomara que dessa vez fique a marca. Quero carregar a sua marca no meu corpo pelo resto da vida. E o anti séptico já deu jeito nos bicos dos seios.
— Alguma culpa?
— Ao contrário: só felicidade e realização.
Acendeu dois cigarros. Carinhosamente colocou um entre os lábios dele e com volúpia de sede no deserto sugou uma profunda tragada quente do seu.
— Você ainda está com a minha irmã, não? Mais de duas semanas. A imprensa continua cacarejando histérica?
— A bateção de bumbo de sempre.
— Imaginou a reação das pessoas se um dia descobrissem que o Maníaco Mascarado e o chefe de Segurança Pública, que ainda por cima é genro do governador, são a mesma pessoa? A princesinha da família está sofrendo muito?
— Até que está gostando, a vadiazinha suja. Aliás, pelo que me disse, ela passa por coisas até piores nas mãos de seu pai. Sabia que ele a estuprou há dois anos?
— Com catorze? Até que demorou. Comigo foi aos doze.
— Você me contou.
— O que enojava mesmo era minha mãe, a primeira-dama, presidente da Liga da Decência do Estado, me vestindo com aquelas camisolas transparentes, sensuais e vulgares antes de me levar para a cama dele. Cuidado para não deixar minha irmãzinha adolescente se apaixonar por você, porque que eu posso ficar com ciúmes, hein?
— Não tem perigo, mas confesso que a ideia de martirizar as duas irmãs, a mais velha e a mais nova ao mesmo tempo, me passou pela cabeça e me fascinou.
— Tantas se apaixonaram por você. Muitas ainda se apaixonam, não?
— Sim, mas você foi a única que escolhi.Na busca do gozo farto, intenso, não somos senhores de nosso próprio destino.
— Por isso jamais busquei explicações ou justificativas. Estou convencida de que os prazeres proibidos nascem de si mesmos. E quando vai libertá-la?
— No momento certo: para ela e para mim.
— Sem dúvida, a libertação dela vai aumentar muito seu cacife junto a meu pai e à opinião pública, ainda mais agora que ele pretende lançar seu nome para concorrer à prefeitura.
— É, as coisas estão caminhando bem.
— Tantas até hoje. Muitas antes de mim. Quando você for prefeito, pretende encerrar a carreira como Maníaco Mascarado?
— Olha, é algo que ainda não decidi. Mas seja como for, mesmo que desapareça, o Maníaco Mascarado viverá para sempre guardado com desejo e saudade no mais fundo do coração das mulheres de alta sociedade deste país.
A noite conspirava pela escuridão, mas os potentes holofotes instalados nos bem cuidados jardins do palácio do governo prometiam muita luminosidade alegre ao nublado céu sem lua da cidade.

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