terça-feira, 18 de dezembro de 2012

It’s Only Rock’N’Roll

Foto: Chris Maher
  
   Vocês precisam acreditar em mim.
     Prometo contar só uma parte da história. O resto deixa para a vida. Ela que assuma a culpa pelo que falta contar.
     Paz e amor. Sexo, drogas e rock and roll, sempre que possível em doses paquidérmicas: separadamente ou tudo junto dependendo da disponibilidade, coragem ou sorte de cada um. Trilha orquestrada a partir das filosofias, modas e modismos da swinging London e de Haight-Ashbury na “fumada” Frisco.
     Quarenta anos atrás, no começo dos anos sessenta, o mundo parecia estar sendo transfigurado por um maravilhoso demente cósmico que tudo podia e a todos comandava com alegria e ingênua irresponsabilidade infanto-juvenil.
     Aquela anárquica agitação, porém, demorou a ser aceita em alguns lugares. A vida nas cidades do interior era muito diferente. E havia a ditadura militar.
     Já as mulheres sempre foram iguais às de sempre.
     Ainda mais na idade de Tatiana. Aquela idade em que os jovens acham que tudo do mundo dos velhos é ruim e quando tentam entender têm certeza de que é pior.
     Até ficarem velhos.
    Sabia que estavam preparando uma festa-surpresa para ela. Fazendo dezoito anos naquele dia, cantarolando de dentro da cabeça para si mesma o refrão da canção recém-lançada pelos Stones (“I know, it’s only rock’n’roll, but I like it”), Tatiana caminha apressada pelo fim de tarde sem se importar com os olhares cobiçosos às suas coxas à mostra.
     A saia azul-marinho do uniforme enrolada na cintura (“Ninguém nesse fim de mundo sabe o que é mini saia, uns caipiras!”) quando se movimenta deixa aparecer de relance as bochechas rosadas de sua bunda perfeita embaladas no comportado algodão das calcinhas apertadas, impotentes para conter tanta delícia de carnes jovens.
     Já tinham fofocado para o padrinho (“Parece coisa dos Mexericos da Candinha, meu Deus!”), mas ela desmentira com cara de inocência. Ele sempre acreditava nela.
     Qual o problema em mostrar as pernas?
    Conhecido como o Comendador, o padrinho, o mais rico comerciante da cidade, gostava muito delas. Desde muito pequena, lembra-se, ele se divertia em colocá-la sentada em seu colo e ficar acariciando suas coxas por longos períodos, com um sorriso de malícia no bigode grisalho e com uma dureza no meio das pernas que espetava as carnes de seu traseiro. Quando ficou um pouco mais velha soube muito bem o que significava aquele volume duro nas calças dele. Aliás, agora que estava ficando crescido, o irmão de criação também mostrava sorrisos sacanas e o mesmo endurecimento no meio das pernas, quando a espiava tomando sol na piscina com seu biquíni de bolinhas amarelinhas tão pequenininho. Não haviam faltado tentativas tímidas e desajeitadas para passar a mão em sua bunda.
    Já o sorriso da madrinha, presidente da seção regional da Liga da Decência, era diferente, perverso, anunciando o terror das surras com a apavorante vara de marmelo sempre ameaçadora pendurada atrás da porta da cozinha. Mas há muito Tatiana não tinha mais medo daquele castigo. Só gritava e chorava para que a madrinha prolongasse a tortura. Não sabia porque, mas após uma certa idade havia começado a gostar daquela dor. Às vezes, de propósito, fazia coisas para irritá-la e ganhar uma surra com a vara de marmelo.
    Seu corpo vivia acalorado (menos desde que passara a se masturbar com certa regularidade), ansiava pelas coisas de sexo que lia em livros e revistas proibidos, mas se contentava com as brincadeiras de beijos, línguas e dedos com as meninas no banheiro do colégio de freiras. A vontade era quase insuportável, mas perder a virgindade antes do casamento, nem pensar. O padrinho a mataria.
     — Tatiana: já para dentro do carro!
    O coração começou a dar chutes em seu peito quando ouviu o grito da madrinha. Os joelhos se chocavam tremendo de medo quando se sentou no banco do automóvel. O gelado do estofamento em contato com a carne de seu traseiro provocou um arrepio que percorreu sua espinha e foi instalar-se endurecido nos bicos dos pequenos peitos firmes de adolescente que se projetavam atrevidos contra o tecido fino da finíssima blusa branca.
     — Andando pela cidade com as pernas à mostra, exibindo-se como uma reles prostituta. E ainda por cima sem sutiã. Que tempos são esses, que tempo são esses, seu Damião?
     Pelo retrovisor, o olhar do motorista negro era de desaprovação em concordância com a revolta da patroa.
     — Bem que avisaram a seu padrinho. Que desgosto, meu Deus. A gente pega uma menina sem pai nem mãe para criar, dá do bom e do melhor e ela nos paga com vergonha e ingratidão!
     — Madrinha, eu...
     — Calada! Você vai ver o que seu padrinho fará com você quando chegarmos em casa.
     Assustada Tatiana percebeu que o olhar do negro Damião sorria maldoso pelo espelho. E brilhava ainda mais pervertido quando, obedecendo às ordens da madrinha, levou-a com brutalidade pelo braço e largou-a em pé no meio do salão de festas respirando ofegante com os olhos no chão. Não sabia a razão do medo. Se fosse a surra com vara de marmelo até iria gostar, mas percebeu que o que viria agora seria algo assustadoramente desconhecido.
     Por trás, uma venda foi colocada sobre seus olhos. Sentiu suas roupas sendo arrancadas com violência. Suas mãos amarradas para trás. Damião estaria fazendo isso?
     Estava nua.
     Ruído de passos. Pessoas respirando. Alguns murmúrios.
     — Então a vadia gosta de exibir-se pela cidade trazendo vergonha à família?
     A raivosa voz solene e severa do padrinho era inconfundível.
    O grito veio imediatamente após a primeira fisgada de dor. Era a velha conhecida vara de marmelo. O estilo era inconfundível, a madrinha estava espancando-a.
     — Pare de gritar como uma porca, sua putinha. E você, minha caríssima esposa, não se esqueça do primeiro mandamento: puna, mas não marque!
     — Deixe, meu honrado amigo. É necessário que as cicatrizes marquem a alma.
     Padre Pio, o seu confessor?  O que ele estava fazendo ali?
     — A sabedoria dos tempos inquisitoriais ensina que, do ponto de vista da punição, a alma da vadia homizia-se nos glúteos e é justamente ali o adequado horto para a aplicação do castigo.
     Aquele sotaque francês. Madre Pureté, a diretora do colégio de freiras?
     Que loucura insana era tudo isso?
    — Dane-se toda a prosopopeia dessa resmungação de papa-hóstias. A fome de subserviência dos inferiores desprezíveis deve ser alimentada pelos dominadores a porra e porrada para garantir a submissão e a obediência.
     O tom discursivo não deixava dúvidas: era o coronel Severo, prefeito da cidade, líder do Partido Conservador e poderosíssimo cacique político.
     A flagelação continuava com uma regularidade quase mecânica. A madrinha executava a sinfonia de açoites com o virtuosismo de um caipira que sabe tocar guitarra como se tocasse um sino. Tatiana, porém, identificava um ruído intermitente entre as pancadas e as vozes. Uma máquina fotográfica? Quem estaria tirando fotos? O irmão postiço, lembrava agora, havia ganho uma máquina fotográfica super moderna de presente de aniversário.
    As lágrimas ensopavam o tecido da venda. Soluçava tristemente. A humilhação superava a delícia da dor.
     — Mas que diabo de maluquice é essa, porra?!
     Seu grito de revolta ecoou pelo salão como um sino que badalasse sofrimento.
     — A degradação da moral e dos bons costumes definitivamente está corroendo a alma desses jovens como um câncer que escarra pus e podridão sobre os tradicionais valores da família de nossa pátria.
     Essa era fácil: a vibrante e eloquente retórica da oratória moralista de dona Virtuosa, a empedernida virgem, velhota carola, vice-presidente da seção regional da Liga da Decência, que enxergava imoralidade até na seminudez do Cristo na cruz. Escutou ainda algumas expressões de concordância. Toda a diretoria da Liga estaria ali assistindo à sua humilhação?
     Aplausos. Tatiana pensava estar louca, mas ouviu aplausos.
     — Padrinho, por favor, eu só enrolei a saia do colégio na cintura para ficar um pouco mais curta e parecer uma mini saia.
     — Ora, queria ficar nua? Agora está nua.
    — Usar mini saia não é estar nua. É só a moda. Todo mundo está usando. Não tem nada de mais. Padrinho, em nome da Virgem Maria...
    — É o demônio em corpo de fêmea! E ainda comete a afronta da blasfêmia! — a entonação do padre Pio traduzia a irada indignação — Se a pecadora não reconhece a indecência de seu despudor, que encare sua própria vergonha pecaminosa.
     A venda foi arrancada com violência.
    Sim, estavam todos ali, encarando-a nua. E todos nus, as mãos nos sexos, cada qual à sua maneira, como se executassem uma masturbação em coro. A diversidade da dissonância para alcançar a harmonia do gozo. Menos o padre Pio e madre Pureté: ambos conservavam suas vestes eclesiais. Ele com a batina presa à altura da cintura, exibindo um pênis enorme em ereção inacreditável; ela com o hábito aberto, escancarando a mostra de uma boceta escondida atrás de uma espessa massa de pelos púbicos negros e um par de peitões leitosamente brancos caídos, auréolas marrons como olhos melancólicos.
    Por que haviam trazido a mesa de banquete para lá? As seis senhoras, membros da diretoria da Liga da Decência, agarraram-na com brutalidade e a atiraram sobre a mesa. Depois, seis cuspidas nojentas em sua face. Sua bunda estava em carne viva pela flagelação.
    A pesada bofetada do padrinho fez sua boca escancarar-se dolorida. Com agilidade, Damião introduziu o poste negro que tinha no meio das pernas até machucar sua garganta. Tatiana ofegava, quase impossibilitada de respirar.
     Dor aguda entre suas pernas.
     O irmão, com cuidadoso sadismo, sem parar de tirar fotos, ocupava-se em arrancar, um a um, com estudada satisfação, os recém-nascidos pentelhos adolescentes ainda pouco crespos de sua boceta virgem.
     — E aí, maninha, a carne preta da rola do Damião é mais gostosa do que os paus brancos que você anda chupando atrás dos muros da cidade?
     As gargalhadas debochadas eram um tormento. Todos sabiam que era virgem.
     Com um sorriso insano, padre Pio puxava com insanidade o cabeludíssimo chumaço de pentelhos entre as pernas de madre Pureté. A freira velha gemia em êxtase.
     — A irmã bem que podia raspar essa pentelhada toda para nos presentear com a visão dessa cona velha que há duas gerações povoa as fantasias das punhetas de toda a molecada dessa cidade — o coronel Severo gargalhava engasgado, enquanto masturbava o pênis semiflácido.
     — Sinto, coronel, mas seria absolutamente inapropriado a uma eterna noiva de Jesus andar por aí toda raspada. Isso é privilégio das cadelas vadias não tementes a Deus — ela explicou didática.
     — Bem falado irmã — o padre concordou aplicando um puxão mais abrutalhado que arrancou um urro de dor e prazer da freira.
     O ruído do flash da máquina continuava espocando alucinante nos ouvidos de Tatiana.
    Damião pulou ligeiro de sua boca e depositou um generoso esguicho de esperma pegajoso entre o vão de seus seios juvenis.
     Enojada.
     — Por favor, padrinho, o que vão fazer comigo?
     — O primeiro batismo que te dei foi com água. Mas a tua iniciação como cadela vai ser com sangue: o sangue de teu corpo pecador.
     — Mas eu sou virgem!
    — Mesmo virgens todos carregamos desde o primeiro choro a imundície do pecado original — sentenciou dona Virtuosa em tom de beatitude, secundada por um depravado coro de “améns”.
     Seu grito de sofrimento foi saudado por risadas dementes, histéricas. Não sabia o que era, mas a madrinha introduzia com violência algo monstruosamente grosso em seu ânus.
     — Isso, comadre. Como diz a sabedoria do povo, as mulheres são como os fuzis, devem ser carregadas por trás.
     A indecência do coronel Severo era nauseante.
     Com voz monocórdica padre Pio sentenciou:
     — Como padrinho, a honra deve ser sua, Comendador.
    Damião a imobilizava fortemente pelos pulsos. O irmão continuava com as fotos. O padrinho separou suas pernas até fazê-la gemer. Seu sexo, agora sem pelos, estava inteiramente exposto.
     Em passos litúrgicos, madre Pureté aproximou-se balançando os peitões caídos: na mão direita um reluzente cálice de finíssimo cristal.
     — Muito parecida com uma sobrinha minha a quem também iniciei há alguns anos.
     O sorriso enlouquecido do padre era assustador. Tatiana começou a sentir o enorme cacete entrar em seu corpo e rasgar seu ventre. Uma estocada mais decidida, um pequeno uivo de dor e estava determinado o rompimento de sua virgindade. Madre Pureté, com adoração religiosa, colocou-se abaixo das pernas do padre e cuidadosamente colheu gota a gota o sangue que vertia da boceta de Tatiana.
     O vai-e-vem do sacerdote durou ainda alguns minutos. Entre lágrimas, Tatiana pôde ver sua expressão transfigurar-se. Com um grito animalesco padre Pio repentinamente saiu de dentro dela. Com espantosa agilidade, Madre Pureté agarrou o pulsante caralho e amparou a transbordante ejaculação com o cálice.
     Violentamente o padrinho apertou o rosto de Tatiana, obrigando-a a manter a boca aberta.
     Num cerimonial litúrgico o padre fez alguns gestos cabalísticos sobre o cálice, enquanto recitava.
     — Esse é meu corpo, esse é seu sangue. Ambos se misturam. É o novíssimo testamento que te lego para que o repitas em memória da degradação, da submissão e do prazer com todo homem ou mulher que usar de teu corpo daqui para a frente, per omnia secula seculorum.
     O viscoso líquido rosado foi lentamente derramado na boca de Tatiana. Ela engolia num misto de asco e fascinação.
     As fotos, as malditas fotos continuavam.
     Depois os aplausos. Novamente os aplausos.
     O Comendador.
     — Coronel, é minha honra que o senhor deposite sua privilegiada semente nessa agora iniciada cadela.
     — Mas o prazer será todo meu, Comendador. Madre parece que a menina está um tanto afogueada com a função toda.
     A freira trepou na mesa, acocorou-se sobre o rosto de Tatiana e passou a mijar abundantemente em seu rosto, enquanto o coronel esforçava-se para penetrá-la com o nada cooperativo pênis envelhecido.
     Pareceu uma eternidade, mas finalmente ele gozou.
     O padrinho tornou a gritar.
     — Alegria, isso minha gente, muita alegria. A cadela Tatiana está iniciada e agora está à disposição de vocês, homens e mulheres, parentes e convidados! Sirvam-se à vontade
     Quando ouviu aquilo, Tatiana soube que a noite ia ser longa, muito longa, que sua iniciação estava longe de terminar. Mas ela também já não se importava. Não sabia explicar a razão, mas estava quase que hipnotizada de prazer. Uma espécie de calma, torpor, tomava conta dela. Não porque tivesse noção do que fosse sadomasoquismo. Mais porque agora preferia lembrar apenas do refrão da canção dos Stones(“I know, it’s only rock’n’roll, but I like it”).
     Olhando as fotos, Tatiana não conseguia deixar de sorrir.
     Tanto tempo, mas lembrava tão bem.
     Acariciou com emoção a medalha de ouro. Mais uma vez releu a inscrição: “Lembrança da iniciação da cadela Tatiana – 1974”. A joia viera como presente pelas mãos da madrinha ao final daquela noite quase interminável junto com inúmeros outros presentes: dos padrinhos e de todos os participantes daquela orgia insana. Impossível lembrar quantas vezes havia sido penetrada, em todos os orifícios de seu corpo. Impossível deixar de lembrar todos os sabores de todos os corpos e fluídos que teve de experimentar.
     Permanecera na cidadezinha ainda por quase um ano. Passara a ser respeitadíssima pela família e pela sociedade. Participou de algumas outras sessões de sexo e aprendeu muito com todos.
     O álbum que agora tem em mãos é uma cópia. O original sabe-se lá onde está. O coronel Severo comprara as fotos originais por uma considerável quantia que, muito bem aplicada pelo padrinho, foi mais do que suficiente para financiar seus estudos numa das melhores faculdades da capital. Era grata ao coronel por ter lhe presenteado com essas cópias.
     Sua gratidão seria eterna a todos por a terem iniciado nas delícias da submissão.
     Anos depois, em honra à servidão, largou dos quase trinta anos de casamento e do casal de filhos.
     Aos quase cinquenta, ainda era Tatiana, mas junto a Deus Lagarto, seu mestre e dono, agora era também Diamond Lucy. Na sofisticação das sessões que vivenciavam, sós ou com outras pessoas, Tatiana sente-se flutuando num céu repleto de diamantes, como se estivesse vivendo para sempre num campo de morangos onde nada é real, mas onde tudo traz satisfação.
     Hoje, mais uma vez revendo as fotos, só tem uma preocupação: a filha completa dezoito anos em um mês.
     Murmura para si uma frase de um escritor cujo nome esqueceu: “Com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra”.
     Sorri cínica e terna ao mesmo tempo.
     Quer organizar uma festa-surpresa para a filha.
     Porque, afinal, hoje ainda é dia de rock.

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