domingo, 26 de maio de 2013

A Saliva Do Teu Desprezo- Parte 1

Foto: Casey Wayne
Não é impossível matar fantasmas.
O problema é que os filhos da puta se escondem bem que só vendo nos labirintos do nosso passado. Aproveitam-se dos nossos medos mais ocultos e, às vezes, nem uma vida inteira é bastante para exterminá-los todos.
Então, para que perder tempo com eles?
Em Rotten Angels você pode lamber as calçadas.
As pessoas usam o automóvel até para ir ao banheiro dar aquela rápida mijadinha básica. Parece que os bebês quando nascem já saem de lá de dentro do meio das pernas das mães dirigindo reluzentes cadillacs.
Não em Golden Crap - esses alguns quarteirões de esquinas urinadas em downtown que parecem um câncer confinado, que não cresce, mas irremediavelmente mortal. Só algumas baldias chaleiras amassadas de indefiníveis cores descascadas soltando fumaça fedorenta e ruídos asmáticos de seus moribundos motores. Bem, à noite costuma aparecer gente estranha de fora para se divertir com a liberdade que não tem coragem de viver no seu dia a dia em outros lugares da cidade.
No mais, são pessoas que andam, andam, andam, entrando e saindo de hotelecos infecciosos ou casarões decadentes que alugam quartos. Entrando e saindo de bares ou lojas de bebidas. São aquelas que escolheram gastar seu pouco tempo de vida para irem ao encontro breve da morte, no lugar de fazerem de conta que são felizes e ficarem idiotamente surpresas quando a Dama Negra do Alfanje chegar no tempo que tiver de vir. Então um dia, sem que se perceba, desaparecem - morram talvez - e são substituídas por outras de caráter igualmente epidêmico que surgem sabe-se lá de onde. Dá para pensar que se Hitler quisesse, teria com sucesso feito aqui seu gueto final sem nem abalar a conveniente alienação de todos. O povo das calçadas de Golden Crap sempre acorda arrotando álcool e vomitando conteúdos indefinidos de seus estômagos como se saudasse o sol ressaqueado que faz crescer altas as palmeiras que escoltam gloriosas as avenidas asfaltadas de Rotten Angels. E andam, andam, andam como almas condenadas.

Naquela noite de chuva de inundar Macondo, tocando um blues em língua estranha cantado por um sujeito de voz fanhosa (Quem gastaria um níquel furado nessa velha jukebox para pôr para tocar uma canção tão triste? Bem, cada um sabe o preço de sua alegria).
“Foi assim, a lâmpada apagou,
A vista escureceu
E um beijo então se deu
E veio a ânsia louca, incontida do amor“ (1)

Well, a lâmpada não apagou, mas era tão debilmente azulada que não faria diferença nem para um morcego míope. A ânsia pode ter sido louca, quase incontida, mas sem nada a ver com amor. E definitivamente não foi um beijo o que se deu.
- Pode ir, eu sempre preferi mesmo ficar sozinho.
- Eu não posso fazer isso, você não tem amor suficiente para dar nem para você mesmo.
Caralho, só mesmo uma mulher para falar em amor no momento em que você está dando um pé na bunda da vadia, porque não aguenta nem mais lembrar do cheiro que a ordinária tem grudado nos pelos do meio das coxas.
- Tudo bem, só uma ultimazinha e depois você se manda da minha frente, tá?
Com olímpica rapidez atlética ela ajoelhou, com perícia de mão de mágico de circo abriu o zíper e desapareceu com meu pau no fundo da garganta, chupando com a voracidade selvagem de um canibal aspirador de pó. Eu queimando uma bituca de Marlboro na outra. Tédio.
Ainda bem que o bar estava vazio. Só o Jerry Lee, engordurado cabelo amarelo parecendo tingido com chá de cebola, assistindo àquele espetáculo de pública pornografia explícita. Mas ele já tinha visto aquilo tantas vezes que nem se tocava mais. Só se preocupava em que eu não mandasse novamente pendurar a conta. Porém, tenho certeza de que o filho da puta fica se punhetando lá atrás do balcão, enquanto finge que não está olhando.
Apesar do saco cheio que estava da cara dela, tinha de reconhecer: chupetinha dos deuses: ela fazia maravilhas quando não usava aquela boca para falar merda. Ah, foi uma daquelas: intensa e generosa como uma mijada de mulher gorda. Engasguei e quase afoguei a vaca ao mesmo tempo. Detrás do escuro dos olhos apertados vi grandes bolas de fogo explodindo.
- Foi gostoso como sempre é, não foi, escrota?
Uma gota branca descendo brilhante no canto direito da boca. Sempre deixava esse pouquinho escorrendo nojento pelo queixo. (Não podia ser coincidência, tinha de ser de propósito, meu Deus!).
- Nem um beijo de despedida?
- Qualé, ô puta de butique? Tá levando uma dose elefante de minha porra aí dentro do fundo do estômago e quer mais o quê? Mas nem que você escovasse os dentes. Volta logo pra casa-palácio do papai bacana, que ele ainda pensa que você é uma menininha de família e logo te arruma um corno e broxa daqueles que são doentiamente viciados em ter emprego e trabalhar, une vocês pelos sagrados laços do matrimônio e vocês vão ter um monte de filhos saudáveis, rosados e babacas.
Ela me olhou triste, (Porra, só faltava essa vaca começar a chorar, detesto mulher chorando) limpou os lábios com as costas da mão, virou-se e foi embora sem dizer nada. Sabia que não ia adiantar mesmo.
Naquele momento saía pela porta do “O Rato Morto” (Puta nome lindo para um boteco que, não importa o tempo, consegue te fazer sentir no set de um filme da década de quarenta) o último ano de minha vida, que tinha sido um tesão no começo, bom e mais ou menos no meio e uma bosta no final.

- Mais um escocês fajuto nas pedras, Jerry Lee!
- Olha aqui, John Doe, tu pode ser metido a intelectual esquisito para essas coitadas que se submetem a fazer tudo o que você manda, mas pra cima de moi não. Por que não pede whisky como todo mundo? E se acha a bebida tão ruim, por que não vai encher a caveira em outro lugar, ô vadiagem?
- E você acha que se eu tivesse grana, ficava tomando esse veneno nessa biboca ordinária de quinta, porra? E, antes que eu me esqueça, vagabundo é a puta que te pariu.
- O senhor tem Cutty Sark legítimo?
Abobado com a visão, o Jerry Lee só conseguiu balançar afirmativamente a cabeça.
- Então dois double cowboys para mim e para o, digamos, cavalheiro.
O cara que inventou a frase “Nunca houve uma mulher como Gilda” seguramente não conhecia aquele magnífico espécime feminino que se dirigia rebolando em slow motion em direção à minha mesa.
Exuberante como uma vilã de filme noir, num daqueles trajes orientais de gola alta que não deixam nada do corpo à mostra a não ser apetitosos pedaços de coxas pelas fendas laterais, mas que - justos como uma tatuagem sobre a pele - permitem adivinhar tudo de carnes para putaria que existe lá dentro, ela atravessou o bar, um copo em cada mão, com a suavidade sanguíneo-brilhante de um Chevy 57 vermelho com pneus faixa branca rodando borracha queimada pelo asfalto sol/luar da Rota 66.
Sentou-se à minha frente, empurrou um copo em minha direção, olhos oblíquos negros e incandescentes sorrindo maliciosos como uma fria alma assassina sem sentimentos. Mestiça, sem dúvida. O melhor de dois mundos, pensei. Conservadores histéricos viviam berrando sobre um tal “perigo amarelo”. Foda-se, sempre simpatizei com os liberais.
- Veja se esse é do agrado de seu requintado paladar.
Entornei a dose garganta adentro de uma vez.
Ela me seguiu.
Bebia como um homem, como se costuma dizer, mas aquele monumental par de peitos espetando biquinhos duros por baixo da finíssima seda vermelha não deixava dúvidas: era fêmea para se comer com fome de nunca acabar, depois arrotar e ainda deixar restos no prato com remorsos e tristezas. Gostosa como um sorvete de casquinha sabor dólar.
- Um homem que consegue submeter uma mulher a fazer sexo oral à vista de todos num local público, deve ter uma personalidade dominante, não?
- Ah, você viu? Não pensei que tivesse mais ninguém aqui além do Jerry Lee. Questão de jeito: de uma forma ou de outra todas obedecem, todas gostam de obedecer. Cadelas querem pontapés para poder lamber a sola suja do sapato que as chuta. É da natureza delas, nada demais.
- Poucos homens têm coragem de expor tão abertamente pensamentos tão exóticos em relação à forma de se tratar as mulheres.
- O mundo é uma selva, irmã, onde uns devoram e outros são devorados. Eu escolhi estar do lado dos que devoram.
- Filosofia de vida interessante.
Ela sorria.
Não gostei.
- Interessante é o seu cu. Você não passa de uma burguesinha saída sabe-se lá de onde, que resolve vir uma noite se divertir em Golden Crap e tirar uma com a cara de um sujeito meio bêbado, só porque ele tem coragem de dizer o que pensa.
- De modo algum. Fiquei fascinada pela maneira como tratou aquela moça, por isso e pelo que disse o barman me interessei em falar com você. John Doe, não?
- Por falar nisso, vamos deixar uma coisa bem clara, minha cara: por absoluto desinteresse, acabo de dar um pé na bunda daquela rameira, mesmo ela sendo de trepar como uma ensandecida máquina de foder. Obrigado pela sua caridade cristã, mas prefiro que a gente fique na bebida que você está pagando. Aliás, isso é que é whisky, não aquela porcaria com que me embebedo. Sabe por que whisky é melhor do que chupar boceta? Porque whisky te dá dor de cabeça no máximo só no dia seguinte. Posso pedir mais um?
- Quantos aguentar.
Uma mulher com um corpo desses e disposta a pagar whisky do bom enquanto eu quisesse? Precisava lembrar de algum dia rever meus conceitos sobre a não existência de Deus.
- Estalajadeiro! Sirva-me em plenitude da água da saciedade que aplaca o fogo da insatisfação, pois finalmente o deus do álcool e da nicotina olhou com consideração para esse seu mais fiel dos fiéis e decidiu livrá-lo, pelo menos por esta noite, da contagiosa imbecilidade dos idiotas que se esmeram pela vida em querer oferecer cadáveres inutilmente saudáveis ao apetite amoral dos vermes da terra.
Só vendo a cara de bunda do Jerry Lee quando deixou a garrafa de Cutty Sark na mesa.
Ela sorria divertida.
Eu estava agradando.
- Tem onde dormir?
- Acabo de ser despejado por absoluta mesquinharia do canalha do meu senhorio.
- Quanto tempo ficou sem pagar?
 - Coisa de nada, uns três meses. E o puto ainda ficou com todas as minhas roupas.
- Aluguei um quarto em um hotel aqui perto. Tenho coisas lá para te mostrar que podem te interessar muito.
- Impossível deixar de dizer que você é muito gostosa, baby, mas mesmo com esse corpo espetacular e a não ser que você seja vendedora da Avon, não tem nada que possa me mostrar que seja novidade.
- Nunca se sabe.
- E se é de drogas que está falando, está perdendo seu tempo. As minhas duas são essas: nicotina e álcool, com as quais me suicido voluntariamente e pelas quais, além do preço, mesmo sem trabalhar, pago caralhadas de impostos.
- Sim, é uma droga que estou oferecendo, mas uma diferente de todas as que você conheceu ou pensa que conhece. Ela pode ser consumida do jeito que você decidir. E está disponível exatamente debaixo da seda desse cheongsam.
- Péra aí...
- Sabe dos efeitos que a carne feminina disponível e desfrutável para tudo, absolutamente para tudo, pode produzir na alma de um homem? Já experimentou essa sensação de poder e domínio absolutos sobre o corpo de uma mulher?
Viramos mais uma dose cada um. Batemos os copos na madeira da mesa.
- Olha, não bebo nada de garrafa sem rótulo. O teu nome é...
- Ninguém.
Agarrei-a violento pela seda vermelha e fechei a mão em ameaça de murro na boca.
- Acho que posso jogar esse jogo.
- Acho que estamos começando a ir para o mesmo lugar – ela disse com um sorriso que era provocação e desafio.
Well, afinal eu havia chegado a esse ponto da existência humana por teimosamente insistir em parar com a testa as locomotivas que a vida colocava à minha frente.
- Podemos levar o Cutty Sark?
- Nada seria completo sem ele.
Chuva menos forte, mas gelada como um beijo de cadáver.
“Chelsea Hotel”:
Nome muito pretensioso brilhando brega naquele néon verde e vermelho de pastelaria chinesa de pobre. Não sei quantas vezes passei na frente do amarelado prédio decadente, mas nunca havia entrado naquele pulgueiro. A velhota na recepção tinha uma aparência convidativa e simpática de Bette Davis em "O Que Terá Acontecido a Baby Jane?" Entregou a chave com uma careta de nojo e deu um pequeno arroto: quase consegui adivinhar a marca do gim barato que a bruxa devia estar entornando desde o café da manhã.
“Quando dorme a vida, morre o vício”.
Por que diabos alguém iria escrever um troço desses na entrada de uma escadaria de hotel de última categoria?
Onde você está se metendo John Doe?
Improviso do cacete o “Bird” faria com o que viria daqui para frente.

A lâmpada agonizante no teto não conseguia esconder o cenário de vendaval. Como um espaço tão pequeno conseguia conter tanta desordem? Meias de nylon, calcinhas e sutiãs pendurados para secar num barbante esticado, roupas jogadas aqui e ali, as de dentro do armário com as portas abertas não exatamente arrumadas, a cama parecia ter sido palco de uma briga de cachorros assassinos, no centro do colchão uma considerável mancha úmida ainda recente, os tocos de cigarro que não encontraram lugar nos cinzeiros repletos queimaram tranquilas trilhas enegrecidas na madeira dos criados-mudos.
Uma luz mais branca acesa. Ela saiu do banheiro carregando dois copos de geleia.
- Sorry, são os únicos que tenho.
- Com Cutty Sark dentro qualquer vidro vira cristal alemão.
- Conhece-se a potência de um homem pela intensidade de sua imaginação, dizia sempre minha mãe chinesa.
- Devia ser uma mulher muito inteligente.
- Sim, prostituta em Hong Kong. Conseguiu convencer um marinheiro trouxa de que ele era meu pai. Ela morreu uns anos depois, vitimada por pertinaz moléstia. O bêbado escroto até que tentou me criar bem, mas depois que fui expulsa de duas escolas particulares por infrações disciplinares diversas geralmente envolvendo questões sexuais com estudantes e professores de ambos os sexos, ele decidiu também ter a parte dele. Depois que me estuprou, dei uma facada nele enquanto dormia e fugi. Nem sei se está vivo.
- Parece uma vida intensa para alguém com tão pouca idade.
Despejamos duas doses garganta abaixo.
No instante em que eu reabastecia os copos, não sei como ela livrou-se do vestido, o tal de cheongsam.
Meus olhos quase pularam para fora da cabeça quando a vi nua.
Seu corpo tinha várias queimaduras - cigarro, coisas quentes, eletricidade, sei lá - especialmente nos seios. Parecia ter sido atacada por um enxame de abelhas: coberta por marcas de agulhas, mas nada que se assemelhasse a consumo de drogas. Contusões de cores diversas no pescoço, punhos e tornozelos, como se tivesse ficado amarrada por muito tempo. As coxas cobertas por vergões roxo-azulados. A ausência total de pelos na boceta dava um aspecto infantil a seu sexo que brilhava dilatado como se houvesse sido espancado: os lábios tão inchados que a abertura de sua racha tão fechada era só um traço vertical quase invisível como se estivesse cicatrizada depois de costurada (será que não o foi alguma vez?). Óbvios riscos vermelhos, chicotadas sem dúvida, formavam um desenho enlouquecido por toda a extensão de sua pele branquíssima. Uma considerável coleção de cortes sabe-se lá feitos com o que. Algumas cicatrizes permanentes em formatos diversos.
Já ouvira falar de pessoas que se automutilavam, mas ela não podia ter feito todo aquele estrago sozinha.
- E qual é a triste história de sua vida baby?
- Pode olhar à vontade. Não gosto de ter segredos para os homens que me veem nua. É a história de minha vida que gosto de trazer escrita na pele do meu corpo. Apenas uma mulher totalmente depravada, uma ninfomaníaca sem auto estima e que não conhece limites quanto à dor que pode tolerar. Mas não se preocupe, não sou uma vítima desamparada. A escolha dos que vão escrever essa história é minha, só minha.
- Pelo jeito, todos fugidos do hospício.
- Na verdade não. Caras normais que cruzam por você na rua e para quem não se dá a mínima.
Passeava a comprida unha vermelha do indicador pelas marcas do corpo com a indiferença de um guia turístico de necrotério narrando uma autópsia.
- Um trompetista branco de jazz viciado em heroína que cantava baixinho com a voz triste de um anjo chorando; um vendedor de seguros de Springfield casado e pai de três filhos lindos; um homem com um braço só que assassinou a mulher de um médico; um rapaz com cara de menino de histórias em quadrinhos, de família católica milionária, que diz que um dia vai ser presidente do país. Você é o meu primeiro fracassado. Prefiro ser jade, mesmo partido, a ser tijolo, ainda que intacto.
- Mais filosofia da mãe puta?
- Não, Confúcio.
- Ah sei, como dizemos aqui: melhor ser cabeça de sardinha do que cu de baleia.
- Algum filósofo que eu deva conhecer?
- Não, um bookmaker amigo meu a quem devo uma considerável quantia.
Ela riu com a dissimulada perversidade do impiedoso e tirânico Imperador Ming ordenando a destruição do planeta Terra.
- Dizem que os sociopatas geralmente são inexplicavelmente simpáticos.
Fodam-se copos de vidro ou de cristal alemão, agora eu bebia direto do gargalo. Ela tomou a garrafa de minha mão e me imitou.
(1)"Meu nome é ninguém", Luiz Reis, Haroldo Barbosa e Nazareno de Brito

CONTINUA...

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