domingo, 26 de maio de 2013

A Saliva Do Teu Desprezo- Parte 1

Foto: Casey Wayne
Não é impossível matar fantasmas.
O problema é que os filhos da puta se escondem bem que só vendo nos labirintos do nosso passado. Aproveitam-se dos nossos medos mais ocultos e, às vezes, nem uma vida inteira é bastante para exterminá-los todos.
Então, para que perder tempo com eles?
Em Rotten Angels você pode lamber as calçadas.
As pessoas usam o automóvel até para ir ao banheiro dar aquela rápida mijadinha básica. Parece que os bebês quando nascem já saem de lá de dentro do meio das pernas das mães dirigindo reluzentes cadillacs.
Não em Golden Crap - esses alguns quarteirões de esquinas urinadas em downtown que parecem um câncer confinado, que não cresce, mas irremediavelmente mortal. Só algumas baldias chaleiras amassadas de indefiníveis cores descascadas soltando fumaça fedorenta e ruídos asmáticos de seus moribundos motores. Bem, à noite costuma aparecer gente estranha de fora para se divertir com a liberdade que não tem coragem de viver no seu dia a dia em outros lugares da cidade.
No mais, são pessoas que andam, andam, andam, entrando e saindo de hotelecos infecciosos ou casarões decadentes que alugam quartos. Entrando e saindo de bares ou lojas de bebidas. São aquelas que escolheram gastar seu pouco tempo de vida para irem ao encontro breve da morte, no lugar de fazerem de conta que são felizes e ficarem idiotamente surpresas quando a Dama Negra do Alfanje chegar no tempo que tiver de vir. Então um dia, sem que se perceba, desaparecem - morram talvez - e são substituídas por outras de caráter igualmente epidêmico que surgem sabe-se lá de onde. Dá para pensar que se Hitler quisesse, teria com sucesso feito aqui seu gueto final sem nem abalar a conveniente alienação de todos. O povo das calçadas de Golden Crap sempre acorda arrotando álcool e vomitando conteúdos indefinidos de seus estômagos como se saudasse o sol ressaqueado que faz crescer altas as palmeiras que escoltam gloriosas as avenidas asfaltadas de Rotten Angels. E andam, andam, andam como almas condenadas.

Naquela noite de chuva de inundar Macondo, tocando um blues em língua estranha cantado por um sujeito de voz fanhosa (Quem gastaria um níquel furado nessa velha jukebox para pôr para tocar uma canção tão triste? Bem, cada um sabe o preço de sua alegria).
“Foi assim, a lâmpada apagou,
A vista escureceu
E um beijo então se deu
E veio a ânsia louca, incontida do amor“ (1)

Well, a lâmpada não apagou, mas era tão debilmente azulada que não faria diferença nem para um morcego míope. A ânsia pode ter sido louca, quase incontida, mas sem nada a ver com amor. E definitivamente não foi um beijo o que se deu.
- Pode ir, eu sempre preferi mesmo ficar sozinho.
- Eu não posso fazer isso, você não tem amor suficiente para dar nem para você mesmo.
Caralho, só mesmo uma mulher para falar em amor no momento em que você está dando um pé na bunda da vadia, porque não aguenta nem mais lembrar do cheiro que a ordinária tem grudado nos pelos do meio das coxas.
- Tudo bem, só uma ultimazinha e depois você se manda da minha frente, tá?
Com olímpica rapidez atlética ela ajoelhou, com perícia de mão de mágico de circo abriu o zíper e desapareceu com meu pau no fundo da garganta, chupando com a voracidade selvagem de um canibal aspirador de pó. Eu queimando uma bituca de Marlboro na outra. Tédio.
Ainda bem que o bar estava vazio. Só o Jerry Lee, engordurado cabelo amarelo parecendo tingido com chá de cebola, assistindo àquele espetáculo de pública pornografia explícita. Mas ele já tinha visto aquilo tantas vezes que nem se tocava mais. Só se preocupava em que eu não mandasse novamente pendurar a conta. Porém, tenho certeza de que o filho da puta fica se punhetando lá atrás do balcão, enquanto finge que não está olhando.
Apesar do saco cheio que estava da cara dela, tinha de reconhecer: chupetinha dos deuses: ela fazia maravilhas quando não usava aquela boca para falar merda. Ah, foi uma daquelas: intensa e generosa como uma mijada de mulher gorda. Engasguei e quase afoguei a vaca ao mesmo tempo. Detrás do escuro dos olhos apertados vi grandes bolas de fogo explodindo.
- Foi gostoso como sempre é, não foi, escrota?
Uma gota branca descendo brilhante no canto direito da boca. Sempre deixava esse pouquinho escorrendo nojento pelo queixo. (Não podia ser coincidência, tinha de ser de propósito, meu Deus!).
- Nem um beijo de despedida?
- Qualé, ô puta de butique? Tá levando uma dose elefante de minha porra aí dentro do fundo do estômago e quer mais o quê? Mas nem que você escovasse os dentes. Volta logo pra casa-palácio do papai bacana, que ele ainda pensa que você é uma menininha de família e logo te arruma um corno e broxa daqueles que são doentiamente viciados em ter emprego e trabalhar, une vocês pelos sagrados laços do matrimônio e vocês vão ter um monte de filhos saudáveis, rosados e babacas.
Ela me olhou triste, (Porra, só faltava essa vaca começar a chorar, detesto mulher chorando) limpou os lábios com as costas da mão, virou-se e foi embora sem dizer nada. Sabia que não ia adiantar mesmo.
Naquele momento saía pela porta do “O Rato Morto” (Puta nome lindo para um boteco que, não importa o tempo, consegue te fazer sentir no set de um filme da década de quarenta) o último ano de minha vida, que tinha sido um tesão no começo, bom e mais ou menos no meio e uma bosta no final.

- Mais um escocês fajuto nas pedras, Jerry Lee!
- Olha aqui, John Doe, tu pode ser metido a intelectual esquisito para essas coitadas que se submetem a fazer tudo o que você manda, mas pra cima de moi não. Por que não pede whisky como todo mundo? E se acha a bebida tão ruim, por que não vai encher a caveira em outro lugar, ô vadiagem?
- E você acha que se eu tivesse grana, ficava tomando esse veneno nessa biboca ordinária de quinta, porra? E, antes que eu me esqueça, vagabundo é a puta que te pariu.
- O senhor tem Cutty Sark legítimo?
Abobado com a visão, o Jerry Lee só conseguiu balançar afirmativamente a cabeça.
- Então dois double cowboys para mim e para o, digamos, cavalheiro.
O cara que inventou a frase “Nunca houve uma mulher como Gilda” seguramente não conhecia aquele magnífico espécime feminino que se dirigia rebolando em slow motion em direção à minha mesa.
Exuberante como uma vilã de filme noir, num daqueles trajes orientais de gola alta que não deixam nada do corpo à mostra a não ser apetitosos pedaços de coxas pelas fendas laterais, mas que - justos como uma tatuagem sobre a pele - permitem adivinhar tudo de carnes para putaria que existe lá dentro, ela atravessou o bar, um copo em cada mão, com a suavidade sanguíneo-brilhante de um Chevy 57 vermelho com pneus faixa branca rodando borracha queimada pelo asfalto sol/luar da Rota 66.
Sentou-se à minha frente, empurrou um copo em minha direção, olhos oblíquos negros e incandescentes sorrindo maliciosos como uma fria alma assassina sem sentimentos. Mestiça, sem dúvida. O melhor de dois mundos, pensei. Conservadores histéricos viviam berrando sobre um tal “perigo amarelo”. Foda-se, sempre simpatizei com os liberais.
- Veja se esse é do agrado de seu requintado paladar.
Entornei a dose garganta adentro de uma vez.
Ela me seguiu.
Bebia como um homem, como se costuma dizer, mas aquele monumental par de peitos espetando biquinhos duros por baixo da finíssima seda vermelha não deixava dúvidas: era fêmea para se comer com fome de nunca acabar, depois arrotar e ainda deixar restos no prato com remorsos e tristezas. Gostosa como um sorvete de casquinha sabor dólar.
- Um homem que consegue submeter uma mulher a fazer sexo oral à vista de todos num local público, deve ter uma personalidade dominante, não?
- Ah, você viu? Não pensei que tivesse mais ninguém aqui além do Jerry Lee. Questão de jeito: de uma forma ou de outra todas obedecem, todas gostam de obedecer. Cadelas querem pontapés para poder lamber a sola suja do sapato que as chuta. É da natureza delas, nada demais.
- Poucos homens têm coragem de expor tão abertamente pensamentos tão exóticos em relação à forma de se tratar as mulheres.
- O mundo é uma selva, irmã, onde uns devoram e outros são devorados. Eu escolhi estar do lado dos que devoram.
- Filosofia de vida interessante.
Ela sorria.
Não gostei.
- Interessante é o seu cu. Você não passa de uma burguesinha saída sabe-se lá de onde, que resolve vir uma noite se divertir em Golden Crap e tirar uma com a cara de um sujeito meio bêbado, só porque ele tem coragem de dizer o que pensa.
- De modo algum. Fiquei fascinada pela maneira como tratou aquela moça, por isso e pelo que disse o barman me interessei em falar com você. John Doe, não?
- Por falar nisso, vamos deixar uma coisa bem clara, minha cara: por absoluto desinteresse, acabo de dar um pé na bunda daquela rameira, mesmo ela sendo de trepar como uma ensandecida máquina de foder. Obrigado pela sua caridade cristã, mas prefiro que a gente fique na bebida que você está pagando. Aliás, isso é que é whisky, não aquela porcaria com que me embebedo. Sabe por que whisky é melhor do que chupar boceta? Porque whisky te dá dor de cabeça no máximo só no dia seguinte. Posso pedir mais um?
- Quantos aguentar.
Uma mulher com um corpo desses e disposta a pagar whisky do bom enquanto eu quisesse? Precisava lembrar de algum dia rever meus conceitos sobre a não existência de Deus.
- Estalajadeiro! Sirva-me em plenitude da água da saciedade que aplaca o fogo da insatisfação, pois finalmente o deus do álcool e da nicotina olhou com consideração para esse seu mais fiel dos fiéis e decidiu livrá-lo, pelo menos por esta noite, da contagiosa imbecilidade dos idiotas que se esmeram pela vida em querer oferecer cadáveres inutilmente saudáveis ao apetite amoral dos vermes da terra.
Só vendo a cara de bunda do Jerry Lee quando deixou a garrafa de Cutty Sark na mesa.
Ela sorria divertida.
Eu estava agradando.
- Tem onde dormir?
- Acabo de ser despejado por absoluta mesquinharia do canalha do meu senhorio.
- Quanto tempo ficou sem pagar?
 - Coisa de nada, uns três meses. E o puto ainda ficou com todas as minhas roupas.
- Aluguei um quarto em um hotel aqui perto. Tenho coisas lá para te mostrar que podem te interessar muito.
- Impossível deixar de dizer que você é muito gostosa, baby, mas mesmo com esse corpo espetacular e a não ser que você seja vendedora da Avon, não tem nada que possa me mostrar que seja novidade.
- Nunca se sabe.
- E se é de drogas que está falando, está perdendo seu tempo. As minhas duas são essas: nicotina e álcool, com as quais me suicido voluntariamente e pelas quais, além do preço, mesmo sem trabalhar, pago caralhadas de impostos.
- Sim, é uma droga que estou oferecendo, mas uma diferente de todas as que você conheceu ou pensa que conhece. Ela pode ser consumida do jeito que você decidir. E está disponível exatamente debaixo da seda desse cheongsam.
- Péra aí...
- Sabe dos efeitos que a carne feminina disponível e desfrutável para tudo, absolutamente para tudo, pode produzir na alma de um homem? Já experimentou essa sensação de poder e domínio absolutos sobre o corpo de uma mulher?
Viramos mais uma dose cada um. Batemos os copos na madeira da mesa.
- Olha, não bebo nada de garrafa sem rótulo. O teu nome é...
- Ninguém.
Agarrei-a violento pela seda vermelha e fechei a mão em ameaça de murro na boca.
- Acho que posso jogar esse jogo.
- Acho que estamos começando a ir para o mesmo lugar – ela disse com um sorriso que era provocação e desafio.
Well, afinal eu havia chegado a esse ponto da existência humana por teimosamente insistir em parar com a testa as locomotivas que a vida colocava à minha frente.
- Podemos levar o Cutty Sark?
- Nada seria completo sem ele.
Chuva menos forte, mas gelada como um beijo de cadáver.
“Chelsea Hotel”:
Nome muito pretensioso brilhando brega naquele néon verde e vermelho de pastelaria chinesa de pobre. Não sei quantas vezes passei na frente do amarelado prédio decadente, mas nunca havia entrado naquele pulgueiro. A velhota na recepção tinha uma aparência convidativa e simpática de Bette Davis em "O Que Terá Acontecido a Baby Jane?" Entregou a chave com uma careta de nojo e deu um pequeno arroto: quase consegui adivinhar a marca do gim barato que a bruxa devia estar entornando desde o café da manhã.
“Quando dorme a vida, morre o vício”.
Por que diabos alguém iria escrever um troço desses na entrada de uma escadaria de hotel de última categoria?
Onde você está se metendo John Doe?
Improviso do cacete o “Bird” faria com o que viria daqui para frente.

A lâmpada agonizante no teto não conseguia esconder o cenário de vendaval. Como um espaço tão pequeno conseguia conter tanta desordem? Meias de nylon, calcinhas e sutiãs pendurados para secar num barbante esticado, roupas jogadas aqui e ali, as de dentro do armário com as portas abertas não exatamente arrumadas, a cama parecia ter sido palco de uma briga de cachorros assassinos, no centro do colchão uma considerável mancha úmida ainda recente, os tocos de cigarro que não encontraram lugar nos cinzeiros repletos queimaram tranquilas trilhas enegrecidas na madeira dos criados-mudos.
Uma luz mais branca acesa. Ela saiu do banheiro carregando dois copos de geleia.
- Sorry, são os únicos que tenho.
- Com Cutty Sark dentro qualquer vidro vira cristal alemão.
- Conhece-se a potência de um homem pela intensidade de sua imaginação, dizia sempre minha mãe chinesa.
- Devia ser uma mulher muito inteligente.
- Sim, prostituta em Hong Kong. Conseguiu convencer um marinheiro trouxa de que ele era meu pai. Ela morreu uns anos depois, vitimada por pertinaz moléstia. O bêbado escroto até que tentou me criar bem, mas depois que fui expulsa de duas escolas particulares por infrações disciplinares diversas geralmente envolvendo questões sexuais com estudantes e professores de ambos os sexos, ele decidiu também ter a parte dele. Depois que me estuprou, dei uma facada nele enquanto dormia e fugi. Nem sei se está vivo.
- Parece uma vida intensa para alguém com tão pouca idade.
Despejamos duas doses garganta abaixo.
No instante em que eu reabastecia os copos, não sei como ela livrou-se do vestido, o tal de cheongsam.
Meus olhos quase pularam para fora da cabeça quando a vi nua.
Seu corpo tinha várias queimaduras - cigarro, coisas quentes, eletricidade, sei lá - especialmente nos seios. Parecia ter sido atacada por um enxame de abelhas: coberta por marcas de agulhas, mas nada que se assemelhasse a consumo de drogas. Contusões de cores diversas no pescoço, punhos e tornozelos, como se tivesse ficado amarrada por muito tempo. As coxas cobertas por vergões roxo-azulados. A ausência total de pelos na boceta dava um aspecto infantil a seu sexo que brilhava dilatado como se houvesse sido espancado: os lábios tão inchados que a abertura de sua racha tão fechada era só um traço vertical quase invisível como se estivesse cicatrizada depois de costurada (será que não o foi alguma vez?). Óbvios riscos vermelhos, chicotadas sem dúvida, formavam um desenho enlouquecido por toda a extensão de sua pele branquíssima. Uma considerável coleção de cortes sabe-se lá feitos com o que. Algumas cicatrizes permanentes em formatos diversos.
Já ouvira falar de pessoas que se automutilavam, mas ela não podia ter feito todo aquele estrago sozinha.
- E qual é a triste história de sua vida baby?
- Pode olhar à vontade. Não gosto de ter segredos para os homens que me veem nua. É a história de minha vida que gosto de trazer escrita na pele do meu corpo. Apenas uma mulher totalmente depravada, uma ninfomaníaca sem auto estima e que não conhece limites quanto à dor que pode tolerar. Mas não se preocupe, não sou uma vítima desamparada. A escolha dos que vão escrever essa história é minha, só minha.
- Pelo jeito, todos fugidos do hospício.
- Na verdade não. Caras normais que cruzam por você na rua e para quem não se dá a mínima.
Passeava a comprida unha vermelha do indicador pelas marcas do corpo com a indiferença de um guia turístico de necrotério narrando uma autópsia.
- Um trompetista branco de jazz viciado em heroína que cantava baixinho com a voz triste de um anjo chorando; um vendedor de seguros de Springfield casado e pai de três filhos lindos; um homem com um braço só que assassinou a mulher de um médico; um rapaz com cara de menino de histórias em quadrinhos, de família católica milionária, que diz que um dia vai ser presidente do país. Você é o meu primeiro fracassado. Prefiro ser jade, mesmo partido, a ser tijolo, ainda que intacto.
- Mais filosofia da mãe puta?
- Não, Confúcio.
- Ah sei, como dizemos aqui: melhor ser cabeça de sardinha do que cu de baleia.
- Algum filósofo que eu deva conhecer?
- Não, um bookmaker amigo meu a quem devo uma considerável quantia.
Ela riu com a dissimulada perversidade do impiedoso e tirânico Imperador Ming ordenando a destruição do planeta Terra.
- Dizem que os sociopatas geralmente são inexplicavelmente simpáticos.
Fodam-se copos de vidro ou de cristal alemão, agora eu bebia direto do gargalo. Ela tomou a garrafa de minha mão e me imitou.
(1)"Meu nome é ninguém", Luiz Reis, Haroldo Barbosa e Nazareno de Brito

CONTINUA...

A Saliva Do Teu Desprezo- Parte 2


Foto: Aceofla
- Isso é maluquice de pervertidos!
- O que é que há? O “grande” John Doe não passa mesmo de um bêbado metido a intelectual que se diverte humilhando menininhas ricas promíscuas, como sabe qualquer garçom de boteco vagabundo de Golden Crap?
Minha mão fechada em ódio se enterrou em sua barriga macia até o fundo de seu estômago. Ela cambaleou, encolheu-se, dobrou os joelhos e quando me olhou de lá de baixo vomitou um tanto de Cutty Sark com cheiro de azedo misturado com um pouco de algo que havia comido. Um sorriso de estranha felicidade foi se insinuando pela máscara de dor, enquanto ela tentava recuperar um pouco do ar que havia perdido com o murro. Então com um suspiro misto de dor e satisfação uivou como um lobisomem para uma lua triste e começou a mijar no assoalho.
- Good.  Mas só não no rosto, eu peço.
Em instantes, novamente ereta, emborcou mais whisky com sofreguidão. Apesar do que ela havia dito sobre ser uma masoquista sem limites conhecidos para a dor, espantoso que ainda estivesse em pé com tamanha naturalidade.
Suportar o sofrimento era a linguagem do prazer de seu corpo.
Língua pastosa úmida de saliva quente lambe a azulada face provocante da Marilyn Monroe que trago tatuada no braço esquerdo.
- Linda demais. Com ela iria para a cama sem pensar.
Eu estava hipnotizado como um coiote no meio da pista da Rota 66 olhando para os faróis potentes de um Chevy 57 vermelho, paralisado, pronto para ser atropelado por pneus Super Goodyear faixa branca de borracha duplamente vulcanizada. Atropelar coiotes traz muito azar... para os coiotes, é claro.
Acendeu um Marlboro, piscou com malícia para o inconfundível click de fechamento do Zippo prateado, tragou com vontade e com a mão fria (mau sinal) acariciou minha face.
- Não tenha medo do que eu e você sabemos que você é. Lembre-se do que falou a minha mãe puta san: conhece-se a potência de um homem pela intensidade de sua imaginação. Não pare.
A impertinência daqueles seios apontados insolentes para mim daquele indefeso corpo nu de fêmea danificada era insuportável. Apertei e torci seus mamilos com uma crueldade de que nunca me julguei capaz. Umidade pegajosa entre meus dedos. Seu grito calou-se com uma mordida dolorida em meu ombro. Arranquei o cigarro de sua mão, apontei a brasa para seu seio e hesitei.
- Calma, escolha à vontade, ainda há muito espaço.
Abracei-a forte e com frieza estudada, localizei o ponto mais deliciosamente carnudo de sua bunda e ali enterrei com determinação o Marlboro aceso. Ah, o familiar cheiro adocicado de carne humana queimada como nas trincheiras da Coreia. Meu grito encobriu o dela: apesar de eu estar de camiseta, havia conseguido enterrar com força as unhas em minhas costas.
Com raiva joguei-a sobre a cama.
- Você me machucou sua puta doentia!

O espelho leproso do armário do banheiro mostrava definidas as marcas sangrando em minhas costas. Molhei uma toalha tentando parar o sangramento. Eu ia comer essa filha de uma puta na porrada.
Na cama, pernas abertas, a ordinária fumava tranquilamente.
Belíssima.
Sem lhe dar chance de defesa, coloquei a mão entre suas pernas e apertei as carnes de sua boceta esmagando com toda a força que consegui. O grito agora era insuportável – capaz de acordar o sono das pedras - até para aquela vizinhança. A toalha em sua boca resolveu a questão.
Não sei por quanto tempo mantive aquele aperto, mas lágrimas começaram a escorrer abundantes daqueles olhos quase traços.
Esmurrei decidido os lábios de sua boceta e depois a larguei.
Ela exibia um sorriso de felicidade parindo-se em gozo de dentro do retorcido de sua careta de dor intensa.
- Não se iluda, John Doe, essas lágrimas são em homenagem à dor que me causa, não a você.
A reação foi instintiva, levantei a mão...
- Não no rosto, é só o que peço. Faça o que quiser com o resto de mim.
Minha experiência em delegacias de Rotten Angels, como preso é claro, acabou vindo à tona (No dia em que tiras se especializarem em Medicina Legal inventam o câncer sem tumores comprometedores). Enrolei a toalha molhada e passei a golpear aquele delicioso corpo disponível. Dor intensa sem marcas permanentes. Acho que até a megera da portaria seria acordada de seu coma alcoólico com os gritos. Arranquei a fronha de um dos travesseiros e amordacei-a. Puxando-a pelos cabelos, levei-a até o banheiro, arranquei a corda da caixa de descarga e amarrei-a o mais apertado que consegui. Atirei-a de volta na cama, tirei o cinturão e falei, sorrindo sem querer.
- Se é do que gosta, é o que vai ter. Longe de mim não ser cavalheiro o suficiente para atender aos desejos de uma mulher.
O couro passou a descer pródigo e com violência sobre suas carnes. Agora não mais gritos, apenas urros e, sem dúvida, de prazer. As contusões que meu espancamento ia deixando transformavam aquele corpo já tão flagelado numa indescritível bagunça de contusões. Filetes de sangue aqui e ali em suas costas e bunda. Nem percebi que agora estava batendo com o lado da fivela. (Cordeiro de Deus sangrai por nós).

Suando feito um porco. Mais um gole no gargalo.
- Está com sede, ordinária? Quer um pouco?
Não sei em qual recanto imundo de meu cérebro nasceu a ideia, mas aquele cu arreganhado me encarando desafiador do meio daquela bunda não podia ficar ileso.
Enfiei sem dó o gargalo até sentir uma resistência impossível de ser vencida. Uma parte do corpo da garrafa também havia entrado. O álcool devia estar fazendo uma baderna quente de incêndio no interior daquele rabo. Ela urrava de um jeito estranho: acho que agora não era só por prazer.
- Tem razão nas duas coisas, sua puta: sou um bêbado e tenho paladar refinado. E você? Gostando de experimentar por esse cu arrombado o mágico destilado escocês fruto de sortilégio, magia e feitiçaria gaélica? Vamos, deguste por esse rabo de puta tarada as sofisticadas nuances de paladar da água da vida, o uísque beatha, sacrifical sangue da Escócia, malte cevado em reunião de bruxas dançando em volta de fogueira de fumaça com cheiro de turfa queimada.
Arranquei a garrafa que saiu do cu fazendo um ruído engraçado.
- Não perca uma gota sequer ou eu te mato, vadia.
Apanhei um dos copos, coloquei-a de cócoras e ordenei:
- Ponha para fora!
Da mordaça improvisada um ruído abafado de hesitação e revolta entre lágrimas quentes.
- Mandei, não pedi sua puta!
Seu estupendo seio esquerdo transformou-se em geleia na palma de minha mão. Após o urro desesperado de dor veio a obediência em humilhação.
No início o líquido veio gotejando dourado por aquele pequeno buraquinho carnudo. Depois um jato irregular mas constante enchendo o copo da límpida e brilhante mistura de malte, cevada e álcool. E de coisas lá de dentro do corpo dela, claro.
- As lágrimas gotejantes do pranto delirante da dourada feiticeira que corre quase tanto quanto o vento de um sábado de neblina de bruxaria à meia noite, mas que não pode passar por sobre o rio. Derrama seu pranto por amor ao Príncipe do Mal que a quer, mas também por seu destino de ser só mais uma noiva no sabá, nunca a única, a preferida.
Aquilo soava como o doentio discurso de um bêbado descontrolado totalmente endoidecido.
Exatamente o que eu era naquele momento.
Êxtase quase místico ao testemunhar o vidro se transmutando em cristal.
Gole guloso e o deleite da inusitada mistura de um legítimo Cutty Sark temperado com o picante paladar do inusitado sabor do mais profundo interior de uma fêmea excitada em sofrimento.
Não podia esquecer de escrever uma carta aos fabricantes do Cutty Sark, pois em mais de um século, estou certo, jamais uma garrafa de seu refinadíssimo produto etílico foi utilizada daquela maneira.
Empurrei sua cara para o travesseiro, caí de costas no colchão e respirando exausto fiquei vendo estrelas de bandeira brilhando festivas no teto sujo.

Duas ou três gotas vermelhas no lençol.
Alguma coisa tinha se estragado por ali.
Explorei curioso o buraquinho do rabo com a ponta do dedo. Enfiei fundo.
Um gemido sem ai.
Chupei o dedo com jeito de menino experimentando bolo proibido e sentenciei:
- Definitivamente whisky não combina com sangue.
A minha gargalhada demente podia ter sido interminável pela noite, porém meus olhos pararam em algo muito sério: a abundante umidade pegajosa, a água da sede contínua que escorria de sua boceta era o sinal inconfundível da fêmea indefesa ante o assalto sem defesa do gozo. Mais excitante no caso dela. Puxei-a com violência dolorida pelos cabelos e encarei seus raivosos olhos molhados. A dor e a humilhação a iluminavam. Eram a luz da vida para sua alma escura de escrava. O sal para sua insípida alma de mulher.
Abri a calça, ignorei o sangue, enterrei meu pau de uma vez em seu cu e passei a bombear como um alucinado. Ela se agitava como podia, querendo resistir, tentava gritar, mas era inútil.
Agarrei-a novamente pelos cabelos, continuei, aumentei o ritmo das entradas e só parei quando descarreguei a totalidade do condensado leitoso conteúdo de meu saco no mais fundo que consegui de seu corpo.

Eu só queria recuperar a respiração normal, mas a cadela continuava emitindo ruídos raivosos. Puxei-a próxima à saliva de minha boca de desprezo e ameacei:
- Vou tirar, mas se fizer escândalo te faço um corte que você não vai ver cicatrizar, puta tarada. Com o que está tão incomodada, vadia?
Ela era a encarnação do mais puro ódio.
- Era só isso o que queria? Uma mera comida de cu? Por que não disse logo? Eu teria te dado naquele bar vagabundo mesmo, na frente de todo mundo e daquele barman com cara de caipira. Ia ficar mais excitada vendo ele se masturbando do que com você me dando esse sexo tão ordinário. Você não entendeu nada, você não sabe de nada. Você só foi mais uma escolha errada, John Doe.
Ela estava enganada: eu fui um erro maior ainda, pois em poucos homens apliquei um pontapé tão potente. Sua boca virou uma coisa inchada vertendo sangue.
- Seu escroto filho de uma puta! No rosto não, eu pedi. Vá para o inferno!
- Sorry, sweethearth, te enganei mesmo. Definitivamente não sou um cavalheiro disposto a atender aos desejos de uma mulher.
Molhei a ponta do dedo no sangue que escorria de sua boca e com esmero desenhei quatro letras vermelhas em sua testa: “PUTA”. Arrastei-a pelos cabelos até o banheiro, coloquei-a de frente para o espelho.
- Divirta-se com o espetáculo de sua humilhação e decadência. Se der um pio, acabo a murros com o resto dessa tua cara de puta masoquista.

Nas gavetas, na bolsa dela e em todos os lugares que procurei, dinheiro quase só trocado mixuruca de raspa de tacho de fundo de caldeirão de Exército da Salvação em véspera de Natal branco. Mas aquele relógio de ouro que ela deixou dando sopa sobre a penteadeira, sem dúvida, era coisa finíssima.
- Olha, vadia, não que eu seja ladrão, porém o capitalismo, apesar de engrandecer esse glorioso país, reservou uma sorte madrasta a alguns de nós desafortunados nesse vale de lágrimas na Terra. Então sigo aquela filosofia medieval de tirar dos ricos para dar aos pobres. Como estou sem nenhum algum e não conheço, no momento, alguém mais pobre do que eu... E a se acreditar no que disse Jesus, caras como eu acabam sentados ao lado dele no céu assim que morrem. Até que mereço um pagamento pela disneylândia de putaria que te dei, não?
Seu olhar de desprezo nem arranhou minha armadura de desfaçatez.
Tirei o pau para fora e rindo mijei forte em seu rosto, deliciando-me em ver as letras sangrentas vermelhas de sua testa se dissolvendo juntamente com sua expressão de auto suficiência.
Aquela máscara inchada e encharcada de mijo, que há pouco era um lindíssimo rosto semi oriental falou numa agonia quase suplicante:
- Não importam o dinheiro e o relógio. Não vá. Posso aguentar mais do que isso.
Do mais fundo de meu peito busquei o quanto pude de todos os marlboros fumados desde o primeiro e com um ruído nojento enderecei a seu rosto a mais pródiga cuspida encatarrada que consegui.
- Foi o melhor do seu pior que você foi capaz de me conceder nessa noite. Pela saliva de teu desprezo eu te agradeço, John Doe.
A Fender branca de Dick Dale começou a tocar “Misirlou” no último volume dentro de meu cérebro.
Agarrei a garrafa de Cutty Sark e desci as escadas feito um louco.
Nunca mais a vi.

 “Caminho o meu caminho
E nos lugares que passei
As pedras no caminho
São o pranto que chorei” (2)

Só em filmes é que música surge do nada sem se saber de onde.
Outra vez aquele sujeito com voz fanhosa cantando um blues num idioma desconhecido.
Quem poderia ser tão solitário para estar acordado a essa hora escutando rádio?
Noite de lua apagada e chuva de afogar baixinho na enxurrada da sarjeta.
Um vira lata lacrimejando amarelo me olha triste e depois segue ensopado indiferente ao aguaceiro.
Cachorro burro.

O cansaço físico madrugadescendo em sono de exaustão.

Em Rotten Angels toda noite escura acaba em sol brilhante e nem você nem Deus podem fazer nada a respeito.
Simples assim.
Uns dias são ruins outros são piores.
Não lembro de ter sonhado pesadelos nos vapores do álcool.
Acordei estirado no cinza do cimento frio da calçada, molhado e mijado, a garrafa vazia de Cutty Sark firmemente segura na mão e a censura dos olhares moralistas das pessoas de bem que acordam cedo, que passavam me censurando por ainda ter o atrevimento de estar incomodamente vivo no mundo delas.
Me sentia como se tivesse porrado um Chevy 57 vermelho com pneus faixa branca a cento e quarenta quilômetros por hora contra uma árvore perdida num deserto na Rota 66 e cuspido para fora pelo para-brisas.
Imediatamente me lembrei da mulher amarrada no apartamento. Será que a vadia tinha conseguido se soltar?
Well, nem que eu tivesse uma consciência para me obrigar voltaria lá para saber e cela de cadeia era o último lugar que queria tornar a ver por um bom tempo. Definitivamente não estava disposto a protagonizar mais um triunfo soberano da justiça sobre um qualquer derrotado da vida e ouvir o pastor do vilarejo comandando os linchadores e dizendo: “Vamos enforcá-lo rapazes!”. Afinal, sabem todos, os caçadores de bruxas são piores dos que as bruxas.
Empenhei o relógio com o mais cínico dos britânicos sorrisos de Robin Hood.
Na rodoviária, na vitrine de uma loja de discos, um deformado anão brasileiro berrava em espanhol uma irritante música estranha.
Embarquei num aerodinâmico Greyhound e fui para o Norte, para a casa dos meus pais.
Frio do cão nessa época. Dias de tédio revendo o documentário de minha vida, me recuperando com a comida gostosa da mamãe chorando lágrimas de sangue de desgosto, estourando o saco com as aporrinhações de meu pai sobre a lamentável fatalidade de eu ser um irrecuperável bêbado e vagabundo e assistindo na televisão à final do concurso Miss Universe.

Depois de um mês, peguei todo o dinheiro que encontrei na casa e voltei para Rotten Angels. Aluguei outro quarto com aspecto previsivelmente enfermiço e para onde mais poderia ir, senão para Golden Crap?
- Bota um escocês fajuto nas pedras, Jerry Lee!
Felizmente “O Rato Morto” não mudava: mantinha sua hospitaleira atmosfera escura e epidêmica pronta para receber com carinho, álcool e fumaça os brinquedos quebrados da sociedade e todas as espécies de animais da noite de Rotten Angels. Terra de ninguém, nação onde nunca me senti forasteiro.
- Aquela tua amiga mestiça apareceu por aqui.
O buraco do meu cu apertou gelado.
- Ah, sei. E ela perguntou por mim?
- Não: entrou aqui como um fantasma naquele vestido vermelho esquisito - puta tesão ela, hein cara? – deixou isso no balcão, virou as costas e se mandou.
Cartucho de papel pardo enrolado. Não era preciso ser vidente para saber o conteúdo.
Uma magnificamente intocada garrafa de Cutty Sark legítimo!
Palavras escritas no rótulo amarelo com redonda e delicada caligrafia feminina.
“Você foi mais um erro de escolha, mas foi meu erro, de minha escolha. Por isso, te guardarei com carinho como uma coisa minha, algo que se grudou na história de minha vida para sempre escrito nas marcas do meu corpo. Não se sinta mal. Você me concedeu o melhor do teu pior: e pela saliva do teu desprezo eu te agradeço”.
Enfim, na vida, como em desfile de miss, premiação do Oscar e em concurso literário, mais vale ser lembrado como um fracasso marcante do que ser esquecido como um sucesso de conveniência.
De novo a voz anasalada cantando aquele blues em língua estranha.
“Então eu fiz um bem
Dos males que passei“ (2)

Nada de frustrações e recalques entalados na garganta: às vezes se ganha, às vezes se perde.
É, John Doe, um dia, quem sabe, até um perdedor como você poderá ganhar.
Mas enquanto isso é aproveitar a garrafa de Cutty Sark, enquanto durar.
Apesar do que diz o velho provérbio chinês: “A derrota só será uma bebida amarga se concordarmos em tragá-la”.
Meu Deus, que bunda monumental de gostosa tinha aquela Miss Brazil chamada Martha Rocha!
“Não somos mais alguém
O meu nome é ninguém
E o teu nome também
Ninguém “ (1)
THE END
(FAVOR REBOBINAR A FITA)
(1)"Meu nome é ninguém", Luiz Reis, Haroldo Barbosa e Nazareno de Brito
(2)"Poema do adeus", Luiz Antônio