terça-feira, 12 de março de 2013

Bless the Beasts and Children

Foto: Claudio Cammarota
(... “Bless the beasts and children” é um conto em voz homossexual escrito por “instigação” do poeta & amigo Glauco Mattoso... além da puta responsabilidade, desafiador:- andar num universo que por estilo não Me é familiar, o da podolatria e, literalmente, pisar no desconhecido do mundo dessa prática sob a visão homo... o resultado Me agradou e feliz obtive do Bardo da Escrotidão, com a generosidade que rivaliza com seu imenso talento, os Imprimi Potest, Nihil Obstat e, então, o Imprimatur...... assim, quero compartilhar com todos essa alegria &, porque não dizer, orgulho...... valeu, sujeito Glauco... Meu covil de despretensiosas literatices sadomasoquistas está se sentindo importante nesses quatro meses de atividades & Eu ainda mais quando sobrevivido à vida por mais um ano (rs)...... Minhas saudações em S&M...)

Acaba sendo uma compensação natural. Então nunca senti ganas de oferecer moças virgens no altar sangrento de qualquer divindade só porque minha audição ficou mais aguçada. Ainda mais para escutar no meio do falatório idiota dessas ocasiões a infalível frase de espanto: “Nossa, como ele consegue?” Parece que as pessoas estão convencidas de que quem fica cego vira analfabeto, incapaz de escrever, ou que deveria, obrigatoriamente, dar autógrafos em braille. Bem como, todos concordam que o cego é em essência um desonesto: “Se eu estiver mentindo quero ficar cego nesse instante”. Melhor segurar a gargalhada, senão confirmo outra “verdade” sobre cegos: “Todo cego ri com cara de bobo, que nem o Ray Charles”.
Você, que nem nome tem pra mim, não tem mesmo como imaginar que consegui ouvir o que falou baixinho para sua mulher: “Além de cego, ganha uma grana sentida escrevendo essa imundície e ainda dá o botão fedorento”?
Não foi, evidentemente, pela voz, que não tem como ser a mesma. Mas a palavra infantil para definir cu, o mesmo calculado desprezo para falar sobre a veadagem? Não foi acidente de ceguinho desastrado. Deixei a caneta cair no chão de propósito. “Não, pode deixar”, dispensei a ajuda de tua mulher. Precisava tentar confirmar o teu cheiro, de você que nem tem nome pra mim.
Os cegos também desenvolvem mais o olfato e o seu cheiro mesmo que quisesse, não poderia esquecer. E estou sorrindo de felicidade, mas melhor você pensar que todo cego ri com cara de bobo, que nem o Ray Charles.
Bless the beasts and children
For in this world they have no voice
They have no choice...
A bobagem interditada a diabéticos cantada pelos Carpenters era a baba da vez em todas as rádios e vitrolas, maior sucesso principalmente entre a garotada com os hormônios em alvoroço pela puberdade recém-chegada. Eu não tinha nada que estar naquele bailinho de fim de curso no ginásio do colégio do bairro quase pobre. Demagogia barata do diretor para tentar diminuir o desconforto dos meus pais. O cegueta “quatro-olho”, óculos de fundo de garrafa de champanhe, o primeiro aluno da turma, era o mariquinha queridinho dos professores. Nenhuma das meninas dançaria comigo: preferiam manter-se afastadas na desconfiança. Os meninos não tinham porque ser meus amigos: embora no jeito imaturo da idade, tinham a quase certeza que eu também logo teria.
Bless the beasts and children
For the world can never be
A world they see
Light their ways…
Pai, mãe, diretor, professores, todos, ninguém tem poder nas fronteiras do imundo reino do banheiro dos meninos. Você que nem nome tinha para mim, que nem era da minha classe, que era apenas o valentão desbocado sempre provocando a tudo e a todos no recreio com palavrões escabrosos.
Encurralado.
Minha visão nublada tentou inutilmente te focalizar melhor. Bobagem: naquele momento você era o onipresente tirano onipotente, onisciente da desgraça que me estava reservada em seus domínios fedendo a mijo e bosta, teus amigos eram os voluntários cúmplices, algozes desumanos entoando o coro de gargalhadas debochadas.
When the darkness souronds them
Give them love
Let it shine all around them
Bless the beasts and children
Give them shoulder from the storm
Keep them safe...
Quando me agarrou pelos cabelos e me levou a centímetros de seu hálito fedendo a cigarro e bebida, notei que era feio, mas a maldade precoce que a maturidade um dia iria esculpir para sempre em sua face me fez achá-lo belo e não considerei injusto que precisasse me martirizar por haver repetido de ano mais uma vez. Talvez por isso senti-me constrangido em gemer quando a bofetada arremessou meus óculos de cegueta “quatro-olho” para algum desconhecido ponto no infinito do universo. O soco no estômago me tirou a respiração por um tempo que me fez temer morrer em sufocação, mas sabia que não deveria gritar ou pedir socorro, pois poderia vir alguém e então tudo estaria acabado e eu nunca saberia o desfecho do mais que justificado destino humilhante de que era merecedor o primeiro aluno mariquinha queridinho dos professores.
O cimento do chão tinha um cheiro estranho, o solado grosso do teu vulcabrás mandava um aroma enjoativo de borracha e poeira para meus pulmões, porém, a dor em meu rosto esmagado era anestesiada pelo estranhamento da vergonha que, de forma inédita até aquele dia, fazia meu pau estar duro como em nenhuma punheta jamais estivera.
Não era necessário seus amigos terem segurado meus braços e pernas como um patético crucificado. Melhor mesmo estar sem os óculos e ter meu pânico afrontado pela merda molhada de mijo grudada na sola de teu sapato. O pontapé nas bolas do saco foi de fria eficiência para que eu abrisse a boca e obedecesse com entrega sua ordem, lambendo e lambendo e sentindo na língua... Com monstruosa malícia você havia mergulhado o sapato numa das privadas repletas de excrementos, novos, velhos, não importa. O sabor não era o que sugeria o fétido do cheiro. Amargo enxofre? Seria esse o gosto do cu do diabo, o mesmo com que se deleitavam as bruxas no sabá, quando em meia noites de luas cheias malditas depositavam ósculos tarados no demoníaco ânus purulento para alcançarem a degradada delícia da degenerada comunhão com o prazer interdito?
Não foi você, não sei quem jogou meus óculos em meu peito. Não precisei deles para guardar fundo a tonalidade perversa de tua voz: “Se contar para alguém, cegueta filho da puta, te como o botão fedorento, prega por prega, na sangria, sem vaselina!”
Apressado, coloquei os óculos, queria enxergar mais uma vez teu rosto de impiedade juvenil, mas você já saía de costas. Um de seus amigos torturadores olhou para trás: “Olha, o veado tá rindo!”
“Deixa, todo cego ri com cara de bobo, que nem o Ray Charles”, você disse com calculado desprezo enojado.
Uma mágoa do tamanho de um deserto doía de uma maneira desconhecida. Não sabia a razão, mas não era pela humilhação ou pela dor. Um entesamento inédito eletrificava o meu botão fedorento, como você chamara meu cu, e se depositava infernal em meu saco doloroso, exigindo, sem prorrogação, a punheta endoidecida que toquei e toquei e que acabou numa porra pegajosa como uma felicidade de quem ri à toa com cara de idiota, temperada com um aroma de imundície que entorpecia e tonteava.
Lavei o rosto, me arrumei o melhor que pude, mas o teu cheiro destacando-se entre o fedor de toda aquela dolorida humilhação em sujeira não abandonava minha inquietação. “Depois passa”, pensei. Bobagem: fora inevitavelmente contaminado. Ele persiste até hoje, com a mesma intensidade, transmitindo a mesma vertigem sem álcool, em noites e dias, só ou quando, em abjeta submissão, desprezível pedaço de carne rastejante com a bunda nua empinada, franqueio carnes de nuca e pescoço à baba viscosa das mordidas de dentes de tantos quantos a quem imploro para que cumpram, e cumprem, a sua ameaça/promessa daquela noite de escatológica libertação em martírio. Está no paladar de todas as solas de pés e sapatos que sempre desejo imundas e que lambo com degenerado rebaixamento. O mesmo cheiro que me impõe o desejo de desfrutar a despudorada gulodice de ter em minha língua o mijo esguichado direto das rolas, a merda cagada direta dos cus. Entre fezes e urina nascemos, escrevem os fogos de artifício que estouram obscenos no céu escuro de meu gozo maldito pelos que são abençoados pela conveniência da hipocrisia.
Foi revelação quase em epifania, descobrir que o Éden, o Olimpo, o Valhala, o Nirvana, ou sei lá qual espécie de paraíso ansiado, cheirasse a merda e mijo e que a recompensa eterna viria pelo pontapé, pelo pisoteamento, pela purgação no rebaixamento de pelos tempos sem fim lamber e degustar em êxtase as imundícies renegadas pelos outros seres humanos.
Você, que nem nome tem para mim, está certo. Veado, bicha, baitolo, boiola, xibungo, em todos me faço de prostituta arregaçada na mesma única pederastia. Sim, tenho dentro de mim todo um exército de veados hunos em sodomia sem censura pronto a invadir e emporcalhar as imaculadas areias brancas da praia da hipocrisia do bom gostismo com minhas ações sujas e com a metralha de todos os palavrões sujos de que me sirvo para definir a sujeira delas.
Admitem que eu venda bilhetes de loteria ou peça esmolas, mas não que dê meu cu de graça ou solicite gentilmente que me permitam chupar uma rola ou lamber uma sola fedorenta de pé ou calçado sujo.
Em terra de quem enxerga, cego que for veado o suficiente para ter um olho de cu que enxerga é rei na escravidão.
Não me importo que me julgue e condene porque escolho as delícias com que me envenenar do que com os venenos com que querem me anestesiar as consciências limpas pelo ascetismo da conveniência.
Me fiz a náusea acusadora, engolidora de lama e poeira de pés quentes e suados que exalam sufocantes chulés fétidos, que suplica pelas cusparadas, que abre a boca gulosa a buracos arrotadores de peidos, cuspidores de troços, vomitadores de diarreias. Ofereço meu botão fedorento para acolher em desavergonhada intimidade cacetes grossos, finos, grandes e pequenos que se enterram em mim e trazem o inevitável cheiro da bosta, da minha bosta. Arreganho bochechas de bundas, penetro minha língua de saliva grossa em cus e ajoelhado em tributo de adoração a cada bofetada de desprezo que recebo, olho cego para quem não vejo, me punhetando lamuriento, espero como única recompensa apenas o banho de mijo depois da porra.
Bless the beasts and children
For in this world they have no voice
They have no choice
E o mesmo odor agora, aqui, tão próximo de novo, permanecerá anônimo: “Não é pra mim, é pra ela, escreve aí pra Maria Aparecida”.
Irônico que a revelação pela degradação, que um dia encarei luminosa, venha a se incendiar brilhante em minha memória, justamente quando estou no sem cor da escuridão da cegueira.
Deixa pra lá.
Aquela noite me ensinou a não me deixar infelicitar ou frustrar pela vida.
Se a falsidade social não preservasse a pureza da perversidade das crianças, não teríamos adultos monstruosos e para aqueles que como eu oferecem uma e outra face à humilhação dos pontapés e a língua à depravada lambeção da sujeira do mundo, isso seria insuportável.
Por todos esses anos e para sempre, abençoo a besta infantil do interior de sua alma que, com crueldade, me infectou com a delícia da mais baixa das abjeções desprezadas pelos homens.
Devo isso a você que continua nem nome tendo para mim.
Bless the beasts and children
Give them shoulder from the storm
Keep them safe
Keep them warm