quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Boca de Veludo

Foto: Peter Heger
(para mcm)
 
tô morta de sono Papaizinho
 
olho pisca pisca que pisca me irrita porque eu já sei que tô com sono e vou dormir daqui a pouquinho acho que é mais uma segunda-feira maluca ou domingo ainda que eu queria que fosse sempre pra sempre madrugada sei lá perco a noção de tempo nesse tempo à noite meio sem pé nem cabeça sozinha aqui sentada no vaso mijando ardendo de toda assada fumando e olhando para o espelho com cara de bunda ui não deu pra segurar aqui não dá pra segurar por que deveria segurar aqui é o lugar pra não segurar mesmo e afinal por que porra a gente tem de segurar quando não dá e ninguém segura mesmo o cheiro do mundo tá aí pra provar daqui a pouco vem aquela luzinha chata de manhã de dia começando que eu acho uma merda enquanto todo mundo acha bonito acho triste aquele dia sem cor definida de porcaria nenhuma a gente fica sem saber se está no céu ou no inferno começar a nascer iluminando bobo bobo o piso do banheiro amanhã eu começo a fingir que sou enganada de novo pelas mentiras velhas da vida
 
o espaço vazio desse quarto contém é preenchido por toda minha nudez que pode ser desconfortável para muitos ou todos ou ninguém mas não me interessa quem não estiver interessado tem a porta que serve para entrar e para sair para quem estiver se sentindo incomodado quero ficar pelada quero porque quero é problema meu e daí não devo satisfação a ninguém só a você Papaizinho
 
porque eu sou a boca de veludo e faz tempo e muito tempo e sou porque sou desde os tempos do  colégio quando os meninos pediam e depois nem precisavam pedir porque que já queria chupar os pintos deles todos e ficavam duros dentro de minha boca e que diziam que era boca de veludo e gozavam a gosma lá deles e deixavam o veludo todo lá da minha língua pegajoso com aquele gosto sem gosto mais sem graça de nada mas eles gemiam gritavam e empurravam minha cabeça para engolir tudo até o final da garganta enquanto gritavam enquanto gozavam e eu descobri que era boca de veludo no engasgo do pinto grande de um menino que empurrou mais forte do que os outros e gozou direto sem que eu não pudesse deixar de engolir tudo tudinho e ele me chamou de boca de veludo e todos os outros meninos que estavam ali de pinto na mão se punhetando riam de mim ajoelhada e chorando meio engasgada mas vi que elas me respeitavam a partir dali porque eu era boca de veludo e só eu era o que as outras meninas que chupavam eles não eram e nunca seriam
 
sei lá às vezes o Senhor me acha chata e pentelha falando dessas coisas que acontecem e que aconteceram há tanto tempo mas eu acho que é importante falar das coisas que aconteceram no passado porque elas foram vividas pela gente e de uma forma ou de outra deixaram marcas na gente do mesmo modo que o Senhor deixa marcas no meu corpo Papaizinho porque afinal a gente é formado pelo lixo do ontem nós somos hoje resultado de tudo o que aconteceu a nós ontem ou anteontem ou no ano passado ou quando a gente era criança sei lá
 
e para vivenciar a decadência da gente em toda a sua glória você tem meu corpo para usar e abusar e pisar mijar e sujar do jeito que quiser porque eu gosto e você sabe que eu gosto Papaizinho que você faz essas coisas todas comigo que a gente não pode nem deve contar para ninguém que faz mas que a gente sabe que todo mundo também faz só que ninguém conta para ninguém porque não fica bem contar esse tipo de intimidade maluca para os outros
 
tapa e pontapé tem sempre junto com cinto chicote cera de vela derretida quente já teve corda corrente algema cigarro apagado no meu peito a marca da queimadura tá aí até hoje e aquele monte de qualquer coisa que o Senhor enfia em todo e qualquer buraco que bem entende de meu corpo Papaizinho
 
e você fica como os olhinhos brilhantes quando eu apareço fazendo biquinho e beicinho falo com jeito de menininha Papaizinho faz uma menina malvada feliz e que você sabe que é para me causar infelicidade em todo lugar de meu corpo que é só assim que eu me sinto e fico feliz e que deixo você feliz como nunca outra nenhuma por mais cadela que eu que tenha se feito te deixou tão satisfeito do jeito que você goza e esporra e me lambuza e me meleca e me deixa esporrada inteira
 
estou indo naquele terapeuta lá que você me mandou para ver se eu me aquietava e ele me disse que eu devo me acalmar em relação a essas coisas que nós fazemos juntos quando estamos juntos que eu me submeto porque preciso compensar minha insegurança de vida nas mãos de alguém malvado como o Senhor e que eu estou querendo me agredir me desvalorizando porque acho que a sociedade não me valoriza e que eu estou querendo ignorar a minha fragilidade me espelhando na sua força mas afinal de contas o que é que os médicos sabem sobre a gente
 
o Senhor é todo inteligente bem informado tem fama de torturador competente e coisa e lousa e eu sou burra porque sou só sei ser o que sou e gosto de ser cadela para ser chutada desprezada usada como depósito de porra e de cuspe e de porrada e de palavrões dizendo que eu sou puta ordinária vadia cadela e mais um monte de coisas que o Senhor diz para mim aos gritos Papaizinho o que qualquer uma outra ia se sentir mal e enojada mas eu me sinto feliz feliz feliz como nunca ninguém me fez ser feliz desse jeito na minha vida
 
e eu me arrasto da cama devagarinho me arrastando de quatro pelo chão que está sempre empoeirado aqui no meu apartamento as mãos os joelhos as solas dos pés tudo sujo preto de dar nojo e o Senhor pisa na minha nuca apertando meu rosto contra o assoalho me obrigando a lamber o chão sujo e engraçado sujeira dá nojo mas não tem um gosto assim que seja até que muito ruim é meio um gosto de nada e a sua risada perversa que pega na minha alma bem lá no fundo como uma coisa doente que dói e o Senhor naquele dia trouxe aqueles três homens para ficar olhando tudo isso e mais tudo aquilo que o Senhor faz comigo e eu estava envergonhada de eles me verem pelada aberta e sendo usada daquele jeito e o Senhor ainda por cima mandou que eles enfiassem dedos lá dentro no fundo de meus buracos e eles desfrutando cada pedaço quente e melado de pele e carne de minha boceta que eu nunca gostei dessa palavra para chamar a minha xoxota que eu sempre chamei de xoxota mas que boceta eu aprendi com o Senhor que é mais gostosa de falar com jeito de mulher desavergonhada de puta de calçada dizer de boca cheia como o Senhor sempre diz e de meu cu e eu tinha vontade de chorar e chorei mas depois vi que estava chorando de orgulhosa quando vi o Senhor sorrindo perverso de orgulho por poder me exibir para eles daquele jeito humilhante e eu chorava e ria ao mesmo tempo o Senhor lembra Papaizinho
 
que nem quando daquelas vezes em que o Senhor me faz comer resto de comida fria na tijelinha de cachorro no chão ajoelhada com tudo meu lá atrás arreganhado à mostra como cadela cachorra mesmo dessas de rua que comem da sarjeta sobra de lata de lixo que elas derrubam para comer
 
o que eles não sabem é que o Senhor é muito carinhoso comigo mesmo quando me chama de puta princesinha imunda é como eu gosto mais que o Senhor me chame mas nunca vou lhe dizer senão o Senhor descobre que eu gosto e nunca mais vai me chamar de puta princesinha imunda eu sou assim mesmo tão complicada e tão simples ao mesmo tempo descubro o seu carinho quando sou ferida pelo Senhor um troço meio parecido com o que minha mãe dizia para mim lá no interior quando eu era menininha ainda que as mulheres são as imperatrizes da maldição não sei de onde ela tirou essa frase porque ela era burra pra chuchu mas não consegui esquecer nunca mais essa coisa que as mulheres são as rainhas da maldição acho que tinha alguma coisa a ver com bíblia e livros de vida de santos que ela lia lia e lia e só lia isso o tempo todo em que viveu até que morreu de câncer coitadinha
 
deus deus deus pensar em coisas de deus ainda mais nessas horas em que o Senhor faz todas essas coisas comigo são coisas do diabo todo mundo diz mas deus não criou a gente com esse corpo e com esse pensamento então não são coisas de deus também essas coisas de diabo que nós fazemos juntos e que é melhor a gente não contar para ninguém que faz e a mulher é só costela do homem e o Senhor deve ter ódio da costela que deus tirou do homem porque sempre escolhe me dar pontapés nas costelas que ficam doloridas e quando eu estou sózinha deitada no chão gelado velando pelo seu sono enquanto o Senhor ronca satisfeito de meu corpo e dos buracos dele e do whisky que tanto gosta eu fico ali quietinha sentindo a dor e sendo grata pelo Senhor poder ter a mim para descarregar o ódio dos homens pela costela roubada por deus mas no fundo eu fico contente mesmo por saber que mesmo desprezada eu sou um pedaço de seu corpo de homem porque  mesmo sendo por um roubo de um deus eu sou um pedaço do Senhor Papaizinho e o Senhor pode fazer o que quiser com o meu corpo porque no fundo afinal ele é também o seu corpo ou pelo menos um pedacinho dele
 
o Senhor diz que sempre tem consequências de todos os nossos atos de tudo o que fazemos o Senhor como sempre deve ter razão como tem em tudo o que diz mas eu não me importo venha consequência ou não venha
 
eu tenho a pele muito branca sempre tive desde criança não consigo ficar bronzeada nem com muito tempo de sol na praia então fico vermelha muito fácil quando o Senhor me bate de mão ou de chicote ou de vara ou de cinto ou de pau que nem naquela vez em que estava zangado com o mundo e até arrancou cabelo demais quando me arrastou e chutou pelo chão do apartamento como uma bola de papel velho amassado cabelo eu tenho muito sempre tive sempre bonito todo mundo sempre disse e eu pensei que o Senhor ia ficar porque era feriado prolongado mas o Senhor foi embora e fez tudo comigo mas não fez nada por mim Papaizinho mas fez o que quis para o Senhor e é isso que importa para mim pode ser para os outros o paraíso dos bobos mas eu sou boba sempre fui
 
mas eu sei que o Senhor gosta de mim tudo o que pode gostar Papaizinho e sei que não pode mostrar isso para ninguém muito menos para mim de quem o Senhor tem desprezo e nunca vai ser todo meu que tem sua mulher e filhos e outras mulheres na jogada mas eu sei que sou e quero ser toda sua e só isso importa para mim
 
eu fui feita mulher para qualquer homem e cadela saco de pancada só para o Senhor Papaizinho o que fica fora disso é quando o Senhor não está ou não quer estar mas me deixa ir com os outros mas eu não vou inteira não vou só na chupadinha que eu gosto e os homens gostam também eu sei porque gozam e ficam satisfeitos logo e não se comprometem com muita coisa e aí eu sou para eles e nessa hora só nessa hora eu sou para mim e só para mim boca de veludo
 
eu gosto de fazer esses jogos de sexo e de sacanagem e de putaria que o Senhor gosta de fazer comigo eu aprendi muito e fiquei cada dia melhor em todos eles o Senhor mesmo disse meu corpo ficou mais elástico mais aberto mais resistente à dor cada minuto parecendo um monte de anos que demoram a passar mas é gostoso que só gozar porque no paraíso dos bobos o que menos interessa é o tempo e quanto mais tempo o tempo dura mais gostoso é mesmo porque os bobos são bobos mas sabem que tudo pode estar morto no instante seguinte
 
importam as guerras lutadas não as ganhas ou perdidas e eu só quero mesmo é me render sempre quantas vezes forem necessárias várias todas que sejam no mesmo dia não me incomodo já aprendi a não perguntar quando Senhor volta quando o Senhor vem Papaizinho desde que antes de ir embora fique em cima de mim pesado bruto me machucando e goze e goze tudo e quanto quiser do jeito que bem entender dentro ou fora de mim nada a dizer vá e volte quando quiser voltar eu espero que seja agora no próximo momento ou quando quiser eu quero e espero sempre o quarto fica com um cheiro meio enjoativo de mim e do Senhor gozados e eu fecho porta janela tudo para guardar esse cheiro o quanto puder mas ele acaba indo embora e é aí sem é que é difícil de aguentar o que fica mais são as manchas de sua porra de minha porra os riscos de sangue as marcas de suor tudo o que eu não limpo e que o Senhor vem depois de um tempo e diz que está fedendo se soubesse quanto tempo fico sem tomar banho só para conservar esse cheiro grudado na minha pele para proteger um tempo perdido mas não esquecido o sangue vai embora mas a ferida permanece um tempo e a cicatriz quem sabe talvez para sempre
 
vive encrencada falhando preciso mandar consertar essa bosta dessa descarga esse mijo fedendo quente vai ficar aí mesmo nojento com a bituca boiando nojenta com a gosma de papel higiênico nojento e tampão ensanguentado nojento nesse amarelado gorduroso vermelho de sangue nojento e mijo que eu não estou com saco de ir até o tanque na área de serviço e encher balde d’água para jogar
 
tô morta de sono Papaizinho

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

It’s Only Rock’N’Roll

Foto: Chris Maher
  
   Vocês precisam acreditar em mim.
     Prometo contar só uma parte da história. O resto deixa para a vida. Ela que assuma a culpa pelo que falta contar.
     Paz e amor. Sexo, drogas e rock and roll, sempre que possível em doses paquidérmicas: separadamente ou tudo junto dependendo da disponibilidade, coragem ou sorte de cada um. Trilha orquestrada a partir das filosofias, modas e modismos da swinging London e de Haight-Ashbury na “fumada” Frisco.
     Quarenta anos atrás, no começo dos anos sessenta, o mundo parecia estar sendo transfigurado por um maravilhoso demente cósmico que tudo podia e a todos comandava com alegria e ingênua irresponsabilidade infanto-juvenil.
     Aquela anárquica agitação, porém, demorou a ser aceita em alguns lugares. A vida nas cidades do interior era muito diferente. E havia a ditadura militar.
     Já as mulheres sempre foram iguais às de sempre.
     Ainda mais na idade de Tatiana. Aquela idade em que os jovens acham que tudo do mundo dos velhos é ruim e quando tentam entender têm certeza de que é pior.
     Até ficarem velhos.
    Sabia que estavam preparando uma festa-surpresa para ela. Fazendo dezoito anos naquele dia, cantarolando de dentro da cabeça para si mesma o refrão da canção recém-lançada pelos Stones (“I know, it’s only rock’n’roll, but I like it”), Tatiana caminha apressada pelo fim de tarde sem se importar com os olhares cobiçosos às suas coxas à mostra.
     A saia azul-marinho do uniforme enrolada na cintura (“Ninguém nesse fim de mundo sabe o que é mini saia, uns caipiras!”) quando se movimenta deixa aparecer de relance as bochechas rosadas de sua bunda perfeita embaladas no comportado algodão das calcinhas apertadas, impotentes para conter tanta delícia de carnes jovens.
     Já tinham fofocado para o padrinho (“Parece coisa dos Mexericos da Candinha, meu Deus!”), mas ela desmentira com cara de inocência. Ele sempre acreditava nela.
     Qual o problema em mostrar as pernas?
    Conhecido como o Comendador, o padrinho, o mais rico comerciante da cidade, gostava muito delas. Desde muito pequena, lembra-se, ele se divertia em colocá-la sentada em seu colo e ficar acariciando suas coxas por longos períodos, com um sorriso de malícia no bigode grisalho e com uma dureza no meio das pernas que espetava as carnes de seu traseiro. Quando ficou um pouco mais velha soube muito bem o que significava aquele volume duro nas calças dele. Aliás, agora que estava ficando crescido, o irmão de criação também mostrava sorrisos sacanas e o mesmo endurecimento no meio das pernas, quando a espiava tomando sol na piscina com seu biquíni de bolinhas amarelinhas tão pequenininho. Não haviam faltado tentativas tímidas e desajeitadas para passar a mão em sua bunda.
    Já o sorriso da madrinha, presidente da seção regional da Liga da Decência, era diferente, perverso, anunciando o terror das surras com a apavorante vara de marmelo sempre ameaçadora pendurada atrás da porta da cozinha. Mas há muito Tatiana não tinha mais medo daquele castigo. Só gritava e chorava para que a madrinha prolongasse a tortura. Não sabia porque, mas após uma certa idade havia começado a gostar daquela dor. Às vezes, de propósito, fazia coisas para irritá-la e ganhar uma surra com a vara de marmelo.
    Seu corpo vivia acalorado (menos desde que passara a se masturbar com certa regularidade), ansiava pelas coisas de sexo que lia em livros e revistas proibidos, mas se contentava com as brincadeiras de beijos, línguas e dedos com as meninas no banheiro do colégio de freiras. A vontade era quase insuportável, mas perder a virgindade antes do casamento, nem pensar. O padrinho a mataria.
     — Tatiana: já para dentro do carro!
    O coração começou a dar chutes em seu peito quando ouviu o grito da madrinha. Os joelhos se chocavam tremendo de medo quando se sentou no banco do automóvel. O gelado do estofamento em contato com a carne de seu traseiro provocou um arrepio que percorreu sua espinha e foi instalar-se endurecido nos bicos dos pequenos peitos firmes de adolescente que se projetavam atrevidos contra o tecido fino da finíssima blusa branca.
     — Andando pela cidade com as pernas à mostra, exibindo-se como uma reles prostituta. E ainda por cima sem sutiã. Que tempos são esses, que tempo são esses, seu Damião?
     Pelo retrovisor, o olhar do motorista negro era de desaprovação em concordância com a revolta da patroa.
     — Bem que avisaram a seu padrinho. Que desgosto, meu Deus. A gente pega uma menina sem pai nem mãe para criar, dá do bom e do melhor e ela nos paga com vergonha e ingratidão!
     — Madrinha, eu...
     — Calada! Você vai ver o que seu padrinho fará com você quando chegarmos em casa.
     Assustada Tatiana percebeu que o olhar do negro Damião sorria maldoso pelo espelho. E brilhava ainda mais pervertido quando, obedecendo às ordens da madrinha, levou-a com brutalidade pelo braço e largou-a em pé no meio do salão de festas respirando ofegante com os olhos no chão. Não sabia a razão do medo. Se fosse a surra com vara de marmelo até iria gostar, mas percebeu que o que viria agora seria algo assustadoramente desconhecido.
     Por trás, uma venda foi colocada sobre seus olhos. Sentiu suas roupas sendo arrancadas com violência. Suas mãos amarradas para trás. Damião estaria fazendo isso?
     Estava nua.
     Ruído de passos. Pessoas respirando. Alguns murmúrios.
     — Então a vadia gosta de exibir-se pela cidade trazendo vergonha à família?
     A raivosa voz solene e severa do padrinho era inconfundível.
    O grito veio imediatamente após a primeira fisgada de dor. Era a velha conhecida vara de marmelo. O estilo era inconfundível, a madrinha estava espancando-a.
     — Pare de gritar como uma porca, sua putinha. E você, minha caríssima esposa, não se esqueça do primeiro mandamento: puna, mas não marque!
     — Deixe, meu honrado amigo. É necessário que as cicatrizes marquem a alma.
     Padre Pio, o seu confessor?  O que ele estava fazendo ali?
     — A sabedoria dos tempos inquisitoriais ensina que, do ponto de vista da punição, a alma da vadia homizia-se nos glúteos e é justamente ali o adequado horto para a aplicação do castigo.
     Aquele sotaque francês. Madre Pureté, a diretora do colégio de freiras?
     Que loucura insana era tudo isso?
    — Dane-se toda a prosopopeia dessa resmungação de papa-hóstias. A fome de subserviência dos inferiores desprezíveis deve ser alimentada pelos dominadores a porra e porrada para garantir a submissão e a obediência.
     O tom discursivo não deixava dúvidas: era o coronel Severo, prefeito da cidade, líder do Partido Conservador e poderosíssimo cacique político.
     A flagelação continuava com uma regularidade quase mecânica. A madrinha executava a sinfonia de açoites com o virtuosismo de um caipira que sabe tocar guitarra como se tocasse um sino. Tatiana, porém, identificava um ruído intermitente entre as pancadas e as vozes. Uma máquina fotográfica? Quem estaria tirando fotos? O irmão postiço, lembrava agora, havia ganho uma máquina fotográfica super moderna de presente de aniversário.
    As lágrimas ensopavam o tecido da venda. Soluçava tristemente. A humilhação superava a delícia da dor.
     — Mas que diabo de maluquice é essa, porra?!
     Seu grito de revolta ecoou pelo salão como um sino que badalasse sofrimento.
     — A degradação da moral e dos bons costumes definitivamente está corroendo a alma desses jovens como um câncer que escarra pus e podridão sobre os tradicionais valores da família de nossa pátria.
     Essa era fácil: a vibrante e eloquente retórica da oratória moralista de dona Virtuosa, a empedernida virgem, velhota carola, vice-presidente da seção regional da Liga da Decência, que enxergava imoralidade até na seminudez do Cristo na cruz. Escutou ainda algumas expressões de concordância. Toda a diretoria da Liga estaria ali assistindo à sua humilhação?
     Aplausos. Tatiana pensava estar louca, mas ouviu aplausos.
     — Padrinho, por favor, eu só enrolei a saia do colégio na cintura para ficar um pouco mais curta e parecer uma mini saia.
     — Ora, queria ficar nua? Agora está nua.
    — Usar mini saia não é estar nua. É só a moda. Todo mundo está usando. Não tem nada de mais. Padrinho, em nome da Virgem Maria...
    — É o demônio em corpo de fêmea! E ainda comete a afronta da blasfêmia! — a entonação do padre Pio traduzia a irada indignação — Se a pecadora não reconhece a indecência de seu despudor, que encare sua própria vergonha pecaminosa.
     A venda foi arrancada com violência.
    Sim, estavam todos ali, encarando-a nua. E todos nus, as mãos nos sexos, cada qual à sua maneira, como se executassem uma masturbação em coro. A diversidade da dissonância para alcançar a harmonia do gozo. Menos o padre Pio e madre Pureté: ambos conservavam suas vestes eclesiais. Ele com a batina presa à altura da cintura, exibindo um pênis enorme em ereção inacreditável; ela com o hábito aberto, escancarando a mostra de uma boceta escondida atrás de uma espessa massa de pelos púbicos negros e um par de peitões leitosamente brancos caídos, auréolas marrons como olhos melancólicos.
    Por que haviam trazido a mesa de banquete para lá? As seis senhoras, membros da diretoria da Liga da Decência, agarraram-na com brutalidade e a atiraram sobre a mesa. Depois, seis cuspidas nojentas em sua face. Sua bunda estava em carne viva pela flagelação.
    A pesada bofetada do padrinho fez sua boca escancarar-se dolorida. Com agilidade, Damião introduziu o poste negro que tinha no meio das pernas até machucar sua garganta. Tatiana ofegava, quase impossibilitada de respirar.
     Dor aguda entre suas pernas.
     O irmão, com cuidadoso sadismo, sem parar de tirar fotos, ocupava-se em arrancar, um a um, com estudada satisfação, os recém-nascidos pentelhos adolescentes ainda pouco crespos de sua boceta virgem.
     — E aí, maninha, a carne preta da rola do Damião é mais gostosa do que os paus brancos que você anda chupando atrás dos muros da cidade?
     As gargalhadas debochadas eram um tormento. Todos sabiam que era virgem.
     Com um sorriso insano, padre Pio puxava com insanidade o cabeludíssimo chumaço de pentelhos entre as pernas de madre Pureté. A freira velha gemia em êxtase.
     — A irmã bem que podia raspar essa pentelhada toda para nos presentear com a visão dessa cona velha que há duas gerações povoa as fantasias das punhetas de toda a molecada dessa cidade — o coronel Severo gargalhava engasgado, enquanto masturbava o pênis semiflácido.
     — Sinto, coronel, mas seria absolutamente inapropriado a uma eterna noiva de Jesus andar por aí toda raspada. Isso é privilégio das cadelas vadias não tementes a Deus — ela explicou didática.
     — Bem falado irmã — o padre concordou aplicando um puxão mais abrutalhado que arrancou um urro de dor e prazer da freira.
     O ruído do flash da máquina continuava espocando alucinante nos ouvidos de Tatiana.
    Damião pulou ligeiro de sua boca e depositou um generoso esguicho de esperma pegajoso entre o vão de seus seios juvenis.
     Enojada.
     — Por favor, padrinho, o que vão fazer comigo?
     — O primeiro batismo que te dei foi com água. Mas a tua iniciação como cadela vai ser com sangue: o sangue de teu corpo pecador.
     — Mas eu sou virgem!
    — Mesmo virgens todos carregamos desde o primeiro choro a imundície do pecado original — sentenciou dona Virtuosa em tom de beatitude, secundada por um depravado coro de “améns”.
     Seu grito de sofrimento foi saudado por risadas dementes, histéricas. Não sabia o que era, mas a madrinha introduzia com violência algo monstruosamente grosso em seu ânus.
     — Isso, comadre. Como diz a sabedoria do povo, as mulheres são como os fuzis, devem ser carregadas por trás.
     A indecência do coronel Severo era nauseante.
     Com voz monocórdica padre Pio sentenciou:
     — Como padrinho, a honra deve ser sua, Comendador.
    Damião a imobilizava fortemente pelos pulsos. O irmão continuava com as fotos. O padrinho separou suas pernas até fazê-la gemer. Seu sexo, agora sem pelos, estava inteiramente exposto.
     Em passos litúrgicos, madre Pureté aproximou-se balançando os peitões caídos: na mão direita um reluzente cálice de finíssimo cristal.
     — Muito parecida com uma sobrinha minha a quem também iniciei há alguns anos.
     O sorriso enlouquecido do padre era assustador. Tatiana começou a sentir o enorme cacete entrar em seu corpo e rasgar seu ventre. Uma estocada mais decidida, um pequeno uivo de dor e estava determinado o rompimento de sua virgindade. Madre Pureté, com adoração religiosa, colocou-se abaixo das pernas do padre e cuidadosamente colheu gota a gota o sangue que vertia da boceta de Tatiana.
     O vai-e-vem do sacerdote durou ainda alguns minutos. Entre lágrimas, Tatiana pôde ver sua expressão transfigurar-se. Com um grito animalesco padre Pio repentinamente saiu de dentro dela. Com espantosa agilidade, Madre Pureté agarrou o pulsante caralho e amparou a transbordante ejaculação com o cálice.
     Violentamente o padrinho apertou o rosto de Tatiana, obrigando-a a manter a boca aberta.
     Num cerimonial litúrgico o padre fez alguns gestos cabalísticos sobre o cálice, enquanto recitava.
     — Esse é meu corpo, esse é seu sangue. Ambos se misturam. É o novíssimo testamento que te lego para que o repitas em memória da degradação, da submissão e do prazer com todo homem ou mulher que usar de teu corpo daqui para a frente, per omnia secula seculorum.
     O viscoso líquido rosado foi lentamente derramado na boca de Tatiana. Ela engolia num misto de asco e fascinação.
     As fotos, as malditas fotos continuavam.
     Depois os aplausos. Novamente os aplausos.
     O Comendador.
     — Coronel, é minha honra que o senhor deposite sua privilegiada semente nessa agora iniciada cadela.
     — Mas o prazer será todo meu, Comendador. Madre parece que a menina está um tanto afogueada com a função toda.
     A freira trepou na mesa, acocorou-se sobre o rosto de Tatiana e passou a mijar abundantemente em seu rosto, enquanto o coronel esforçava-se para penetrá-la com o nada cooperativo pênis envelhecido.
     Pareceu uma eternidade, mas finalmente ele gozou.
     O padrinho tornou a gritar.
     — Alegria, isso minha gente, muita alegria. A cadela Tatiana está iniciada e agora está à disposição de vocês, homens e mulheres, parentes e convidados! Sirvam-se à vontade
     Quando ouviu aquilo, Tatiana soube que a noite ia ser longa, muito longa, que sua iniciação estava longe de terminar. Mas ela também já não se importava. Não sabia explicar a razão, mas estava quase que hipnotizada de prazer. Uma espécie de calma, torpor, tomava conta dela. Não porque tivesse noção do que fosse sadomasoquismo. Mais porque agora preferia lembrar apenas do refrão da canção dos Stones(“I know, it’s only rock’n’roll, but I like it”).
     Olhando as fotos, Tatiana não conseguia deixar de sorrir.
     Tanto tempo, mas lembrava tão bem.
     Acariciou com emoção a medalha de ouro. Mais uma vez releu a inscrição: “Lembrança da iniciação da cadela Tatiana – 1974”. A joia viera como presente pelas mãos da madrinha ao final daquela noite quase interminável junto com inúmeros outros presentes: dos padrinhos e de todos os participantes daquela orgia insana. Impossível lembrar quantas vezes havia sido penetrada, em todos os orifícios de seu corpo. Impossível deixar de lembrar todos os sabores de todos os corpos e fluídos que teve de experimentar.
     Permanecera na cidadezinha ainda por quase um ano. Passara a ser respeitadíssima pela família e pela sociedade. Participou de algumas outras sessões de sexo e aprendeu muito com todos.
     O álbum que agora tem em mãos é uma cópia. O original sabe-se lá onde está. O coronel Severo comprara as fotos originais por uma considerável quantia que, muito bem aplicada pelo padrinho, foi mais do que suficiente para financiar seus estudos numa das melhores faculdades da capital. Era grata ao coronel por ter lhe presenteado com essas cópias.
     Sua gratidão seria eterna a todos por a terem iniciado nas delícias da submissão.
     Anos depois, em honra à servidão, largou dos quase trinta anos de casamento e do casal de filhos.
     Aos quase cinquenta, ainda era Tatiana, mas junto a Deus Lagarto, seu mestre e dono, agora era também Diamond Lucy. Na sofisticação das sessões que vivenciavam, sós ou com outras pessoas, Tatiana sente-se flutuando num céu repleto de diamantes, como se estivesse vivendo para sempre num campo de morangos onde nada é real, mas onde tudo traz satisfação.
     Hoje, mais uma vez revendo as fotos, só tem uma preocupação: a filha completa dezoito anos em um mês.
     Murmura para si uma frase de um escritor cujo nome esqueceu: “Com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra”.
     Sorri cínica e terna ao mesmo tempo.
     Quer organizar uma festa-surpresa para a filha.
     Porque, afinal, hoje ainda é dia de rock.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Síndrome de Estocolmo


Post tenebras spero lucem

(Atrás das trevas espero a luz)
(Jó, XVII, 12)


Nua.

Tremia.
Além do frio e do medo, a fraqueza.
Feria a pele do braço. O espaço entre as barras meio enferrujadas da jaula era muito estreito.
Arranhou-se.
Sangue.
Sugou a ardida gota vermelha de sabor adocicado.
Com um esforço conformista — a algema em seu tornozelo mordia a carne, quase impedia seus movimentos — conseguiu alcançar a vasilha com água; um gole pequeno, enquanto estudadamente ruminava o pastoso pedaço de pão velho que enojava seu estômago. Repulsivo. Na última vez, por pura maldade, ele havia urinado sobre o pão antes de ir embora.
Tinha sede e fome, mas precisava evitar, o quanto conseguisse suportar. O cheiro azedo de suor, fezes e urina (seu suor, suas fezes, sua urina) misturado ao transpirante odor de umidade impregnado nas paredes e no chão sugeriam um ácido aroma de tudo e de nada ao mesmo tempo.
Nesse instante, como se um filme em velocidade ensandecida fosse exibido na mais escura sala de sua alma, recordou todos os momentos significativos de sua vida: da infância rica e feliz até quando foi raptada. Impensável admitir que, em dias, de dama bem sucedida na sociedade, fora transformada num pedaço de carne, o corpo manipulado com total bestialidade, submetida às mais sórdidas práticas sexuais e às mais depravadas ações físicas que enojariam a mais desclassificada, calejada e insensível prostituta de calçada.
Absoluta degradação.
Havia sido estuprada varias vezes, em todos os orifícios do seu corpo, nas mais alucinadas e inimagináveis posições (ele sempre tinha a insolente crueldade de posicioná-la arreganhada, totalmente acessível, para usufruir de seu corpo sem obstáculos), obrigada a práticas abjetas, ofendida pelas mais repugnantes obscenidades: seu sexo agora era uma “boceta podre”; seu ânus um “cu sujo e fedorento”; seus seios, “tetas de vaca nojenta desqualificada”.
Ela mesma não mais mulher: apenas um pedaço de carne desfrutável.
Dois dias? Três? Mais, sem dúvida. Quantos? Como ter certeza? A luminosidade indefinida do ambiente embaralhava a noção de tempo. Dia? Noite? Dormir apenas quando o cansaço dominasse. As costas doloridas, as pernas meio entorpecidas pela posição semifetal. Ânus e vagina arreganhados, arrombados pelo monstruoso consolo fixado na extremidade da haste de madeira que, ameaçador, encarava-a encostado na parede, como um lembrete permanente da presença dele.
Repugnante.
O asqueroso gosto que parecia jamais iria desprender-se de sua língua também não permitia esquecer.
Perversão imunda.
Arriou as calças, defecou abundantemente em frente a seu rosto, não se limpou e a pauladas obrigou-a a lambê-lo. Sabor de merda merdosa, não queria pensar nisso agora.
Escovar os dentes? Banho? Cômico pensar nisso agora.
Não se atrevia a resistir ou desobedecer. No início tentou implorar por clemência, mas tudo piorou. Aprendeu que com ele isso sempre era possível.
Jamais pensara em coisas como masoquismo ou submissão. Porém, naquela situação, um único pensamento: tudo o que conseguisse suportar só podia fortalecê-la.
Confusa.
Estranhava. Porém, secretamente, inquieta, mais odiava e ansiava por cada terrível e vergonhoso instante que viria.
Depois do choque dos primeiros dolorosos dias, dos mais porcos atos de escatologia e deboche sexual, a raiva e o nojo deram lugar ao desejo de apenas esperar que ele se cansasse de tanta sujeira e desejos de depravação e a libertasse.
Afinal era assim que agia com suas vítimas. Não era um assassino.
Parecia notícia de jornal produzida para enganar fome de estômago de pobre.
Mas o Maníaco Mascarado existia.
Ruído metálico do outro lado da pesada porta de madeira.
O cadeado sendo aberto.
O cheiro de medo tomou conta do ar.
Lamento agudo metálico do enferrujado das dobradiças da pesada porta de madeira.
A luminosidade acovardada não consegue espantar a escuridão mortiça. O negro é a cor do escuro. É como um veludo que arranha a pele em vez de acariciar felino.
Tornara-se familiar.
Pelos buracos da máscara de lã preta podia ver que os olhos claros dele ainda eram chamas de selvageria que brilhavam com a maldade do gelo.
Travo amargoso de adrenalina na língua.
Sua mortificação ia recomeçar.
A respiração acelerada confessa o medo.
Soltou a algema, abriu a porta da jaula e com cínica brutalidade arrastou-a para fora pelos cabelos.
A rouquenha voz indefinida abafada pela máscara.
— Como a rainha das socialites se sente cheirando igual a um ser humano? Tem uma musiquinha engraçada por aí que diz: “Eu sei que a burguesia fede, mas tem dinheiro pra comprar perfume”. Acho que o autor estava pensando em prostitutas endinheiradas e alienadas da sua laia.
— Não tenho culpa por ter nascido rica.
— E parece nunca ter se sentido envergonhada por ostentar essa riqueza com cinismo debochado nesse país miserável.
— Essa sua lógica pervertida é pura bobagem distorcida. Você não é um justiceiro. No máximo um pobre recalcado, um tarado, um psicopata, um bandidozinho pé de chinelo como outro qualquer.
— Mesmo? E você fica molhadinha e melada desse jeito com qualquer bandidozinho pobre e pé de chinelo, sua puta?
Com habilidade, três dedos enormes passaram a dançar harmoniosos e impacientes pela sua umidade interior. A feminilidade do aroma de fêmea que exalava do vão de suas pernas tomou conta do ar despertando nele os mais secretos instintos animalescos.
— Manipular um corpo trêmulo de medo transmite uma sensação quase que de divindade, de afrontar o que é interditado à maioria, que beira ao desafio do pecado original: beber do cálice da dor.
O clitóris estava enrijecido. Queria evitar, não conseguia. Sentiu o pequeno pedaço de carne sensível ser esmagado com força numa perversa torção entre o indicador e o polegar da mão direita do homem. Apenas grunhiu. O grito de sofrimento ficou engasgado na garganta. Lágrimas doloridas escaparam pelo apertado dos olhos de sua careta de dor.
Foi um orgasmo selvagem, sem dúvida. Mas uma generosa e quente golfada de urina encharcou a mão dele.
Não pôde evitar.
Sem aviso ele começou a chutá-la, procurando deliberadamente atingir sua vagina e seios, estranhamente jamais o rosto que, embora indefeso, estivesse sempre exposto em agonia. Inúteis suas contorções para tentar se proteger. O interior de seu corpo sofria tanto quanto o exterior. Seu estômago doía tanto como se houvesse engolido a própria dor em exageradas bocadas, sem mastigar. Os pontapés internos a feriam tanto quanto os externos aplicados em seu ventre. A ânsia de vomitar era irresistível, mas era impedida pela ameaça de que, sem a menor hesitação, ele a forçaria a engolir o vômito.
Era o controle do medo pelo terror.
Ele pisou em seu rosto.
— Sua porca! Eu estava entediado, só brincando com essas carnes de rameira de classe rica. Mas agora você merece ser machucada de verdade, exemplarmente castigada por ter feito uma coisa tão suja sem a minha permissão.
Depois de ter enxugado a mão em seus cabelos, trouxe de dentro do bolso da calça uma caixinha de metal amarelo amedrontadoramente reluzente. Era de ouro. Tampa aberta. As agulhas de tamanhos diversos repousavam cuidadosamente espetadas no veludo negro, intimidativas e douradas. Também de ouro.
O desespero de seu olhar anunciava a antecipação de seu sofrimento.
Ele afagou seu peito com volúpia demente. As mãos começaram a moer seus seios. A língua ficou atenciosa com as auréolas rosadas de seus mamilos sensíveis.
A primeira agulha enfiada vertical no mamilo assustado.
Deus, como dói!
— A dor é a mesma, mas todas são diferentes. Cada uma grita num tom diferenciado. Choram em lamentos absolutamente individualizados. Tenho um gravador ligado lá atrás, sabia? Há tempos planejo compor uma sinfonia. A Sinfonia da Dor. Gosta da ideia? Estou pensando em fazer de você a solista da minha sinfonia. Não será uma grande honra? Vai depender apenas de você, de quanto vai durar. Algumas suportaram semanas. Me proporcionaram imenso prazer, devo confessar, antes de se irem.
A segunda agulha entrou horizontalmente pela carne do bico do seio, completando a apavorante cruz dourada.
— Bêbado, quase bêbado, em vê-las sem morrer, mas no limite mínimo da vida. Horas e horas de diversão, elas resistindo no nível mais insuportável da dor e da degradação, sem saber se deviam tentar me agradar para tentarem fugir a seu destino ou se desesperar e entregar-se ao destino que eu definiria para elas. Sublime e encantador dilema para deleite de um sadista. Espero que você não me decepcione. E não se atreva a desmaiar. Pode ser terrivelmente assustador morrer na inconsciência. É desconhecidamente apavorante, mas é da natureza primitiva de todo ser humano desejar, apesar de tudo, encarar a face da morte.
Então ele pretendia matá-la?
Agora era o outro mamilo. Cuidadosamente as agulhas deslizavam perfurando a carne.
Para ele parecia ser extremamente agradável, deliciar-se especialmente com o lento e doloroso processo de introdução das agulhas. Era evidente seu propósito de prolongar ao máximo sua agonia.
Tinha de reconhecer, ia além da simples tara, do desvio da normalidade: ele possuía perícia, era habilidoso, ostentava a mestria de quem sabia o que estava fazendo.
As perfurações ardiam como se estivessem ligadas à eletricidade. As minúsculas gotas de sangue transformaram-se em filetes vermelhos escorrendo lacrimejantes e generosos pelo redondo de seus seios.
— Puro néctar mansamente banhando a ambrosia. O inigualável paladar do sangue destilado pelo medo da vítima umedecendo a carne tenra.
Sedento ele chupou o sangue e aproveitou para morder, mastigando sua carne com fúria animalesca.
Seus agudos gritos de absoluto horror não podiam ser ouvidos por ninguém. Apenas por ele. E pela expressão, percebia que ele se deliciava a cada som de agonia que ela produzia.
Com estupidez separou suas pernas ao limite e de dentro das calças fez surgir o pênis duro engrandecido pela degeneração da cena. Ritmadamente começou a fazer desaparecer e ressurgir brilhante e lambuzado todo o grosso comprimento naquele orifício, a princípio tímido e retraído, que aos poucos ia se expandindo como uma boca gulosa que gritasse em desespero faminto por mais que a sufocassem.
O leitoso jorro melado transbordou pegajoso por suas coxas.
— Sabe que muitas vagabundas milionárias de sua espécie chegaram a me pedir que continuasse a martirizá-las mesmo depois que as soltasse? Estúpidas. O verdadeiro sádico não experimenta qualquer alegria em ter uma escrava disponível. Destrói toda a sofisticação do verdadeiro objetivo do sadismo que é desfrutar o gozo de ferir e humilhar sexualmente uma mulher.
As agulhas agora eram arrancadas com planejado descuido com a intenção de ferí-la mais dolorosamente.
O sorriso enlouquecido permaneceu congelado em seu cinismo quando ele acendeu o cigarro.
Em todos esse tempo havia feito tudo o que ele ordenara. Por que estava sendo ainda mais maltratada? Já nem lembrava por quantas vezes chupara seu pau apesar da repugnância. Bebera litros daquela gosma horrenda e de urina asquerosa esguichada direto em sua garganta. Toda a espécie de objetos que ele sem dó introduziu em seu corpo. Até agora havia sido um brinquedo sexual utilizado nas mais inventivas e obscenas combinações de violência e aviltamento. Um depósito de sêmen e excrementos. Sem oferecer qualquer resistência.
Repentinamente virada de costas não teve como prevenir-se contra a dor lancinante que a brasa do cigarro causou quando foi afundada na carne generosa de sua bunda.
O grito explodiu desesperado.
— Grite, grite muito, cadela desprezível. Porém, fique atenta, pois a realidade não consegue lutar contra essa indesmentível verdade reveladora: a delícia dessa dor e dessa humilhação vai ficar marcada em sua alma para sempre.
Fezes abundantes escaparam desavergonhadas por seu ânus.
Gargalhada sádica.
— Égua cagona, michê de esgoto de privada de puteiro, piranha esmerdeada.
O cinto saiu da cintura e passou a abater-se contra seu corpo. O som chispante do couro cortando a carne. Sua pele parecia incendiada. A flagelação crescia em intensa violência.
Chorava muito.
Berrava querendo pôr os pulmões pela boca afora.
De repente, o silêncio.
— Por que parou?
— Esqueceu da festa, hoje, no Palácio do Governo?
— Nossa, é mesmo. Dessa vez perdi completamente a noção de tempo.
Ele arrancou a máscara do rosto, ajudou-a a levantar-se, beijou-a na boca com ferocidade de gozo e abraçados foram para o banho.
Com descuidada naturalidade feminina enfiou-se com agilidade no provocativo vestido elegante. Vaidosamente passava o caro perfume francês em pontos estratégicos do colo e atrás das orelhas.
Com teatralidade masculina ele vestiu o terno importado e ajeitou com afetação o nó da gravata, estudadamente meio torto como recomenda a boa moda.
Suspiraram confortados ao contato aconchegante com o couro dos bancos do carro vermelho de design insolentemente esportivo.
Depois dos três quilômetros do caminho de terra seguiram suaves pelo asfalto da auto estrada.
— Seus pais vão engolir essa história de que você ficou todo esse tempo incomunicável num spa?
— Pode ficar tranquilo, eu sei ser convincente. Além disso, sete dias a pão e água, merda e mijo devem mesmo ter me feito perder alguns quilinhos.
— Ainda bem que toda a porra que te fiz engolir compensou e não deixou cair teu nível proteico, certo?
Ela gargalhou gostosamente.
— Impossível deixar de me sentir afortunada por ter encontrado um homem com uma mente tão depravada. Ui!
— Alguma coisa errada?
— A queimadura na bunda incomoda um pouco com o balanço do carro, mas uma pomadinha resolve isso logo, logo. Tomara que dessa vez fique a marca. Quero carregar a sua marca no meu corpo pelo resto da vida. E o anti séptico já deu jeito nos bicos dos seios.
— Alguma culpa?
— Ao contrário: só felicidade e realização.
Acendeu dois cigarros. Carinhosamente colocou um entre os lábios dele e com volúpia de sede no deserto sugou uma profunda tragada quente do seu.
— Você ainda está com a minha irmã, não? Mais de duas semanas. A imprensa continua cacarejando histérica?
— A bateção de bumbo de sempre.
— Imaginou a reação das pessoas se um dia descobrissem que o Maníaco Mascarado e o chefe de Segurança Pública, que ainda por cima é genro do governador, são a mesma pessoa? A princesinha da família está sofrendo muito?
— Até que está gostando, a vadiazinha suja. Aliás, pelo que me disse, ela passa por coisas até piores nas mãos de seu pai. Sabia que ele a estuprou há dois anos?
— Com catorze? Até que demorou. Comigo foi aos doze.
— Você me contou.
— O que enojava mesmo era minha mãe, a primeira-dama, presidente da Liga da Decência do Estado, me vestindo com aquelas camisolas transparentes, sensuais e vulgares antes de me levar para a cama dele. Cuidado para não deixar minha irmãzinha adolescente se apaixonar por você, porque que eu posso ficar com ciúmes, hein?
— Não tem perigo, mas confesso que a ideia de martirizar as duas irmãs, a mais velha e a mais nova ao mesmo tempo, me passou pela cabeça e me fascinou.
— Tantas se apaixonaram por você. Muitas ainda se apaixonam, não?
— Sim, mas você foi a única que escolhi.Na busca do gozo farto, intenso, não somos senhores de nosso próprio destino.
— Por isso jamais busquei explicações ou justificativas. Estou convencida de que os prazeres proibidos nascem de si mesmos. E quando vai libertá-la?
— No momento certo: para ela e para mim.
— Sem dúvida, a libertação dela vai aumentar muito seu cacife junto a meu pai e à opinião pública, ainda mais agora que ele pretende lançar seu nome para concorrer à prefeitura.
— É, as coisas estão caminhando bem.
— Tantas até hoje. Muitas antes de mim. Quando você for prefeito, pretende encerrar a carreira como Maníaco Mascarado?
— Olha, é algo que ainda não decidi. Mas seja como for, mesmo que desapareça, o Maníaco Mascarado viverá para sempre guardado com desejo e saudade no mais fundo do coração das mulheres de alta sociedade deste país.
A noite conspirava pela escuridão, mas os potentes holofotes instalados nos bem cuidados jardins do palácio do governo prometiam muita luminosidade alegre ao nublado céu sem lua da cidade.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A casa da Mulher Vermelha

Foto: Muffia

 

 

“Há um lugar em Nova Orleans
Chamado a Casa do Sol Nascente
Que tem sido a ruína de muitos garotos ingênuos
E Deus sabe que eu, há muito tempo, fui um deles
Oh, mãe, diga a seus filhos
Para não fazerem o que eu fiz
Desperdiçar a vida em pecado e tristeza
Na Casa do Sol Nascente”
(“The House Of The Rising Sun”)

Era para ser apenas outra sexta-feira óbvia.
Turma de encontrar em boteco, na boca da noite depois do trabalho para jogar conversa mole fora.
Assalariados de médio para baixo sempre com mês sobrando no ordenado. Nenhum especialmente boêmio, até porque dinheiro para dificilmente restava. Mas quando sobrava, ia-se, só ou em grupo. Afinal, de vez em quando, todos precisavam “trocar o óleo”.
Nesse cenário, coração fedendo a sangue suado da Boca do Lixo, conheci o lugar.
— Vamos no “611” da Rio Branco mesmo.
— Ôrra meu, de novo?
— E daí, a gente sempre vai: é só subir a escada e em qualquer andar, em qualquer porta que abre tem mulher dentro.
Catso, acho que já conheço todas as putas daquele prédio. Só de gonorreia peguei duas lá.
— Sem contar que aquilo anda cheio de uma baianada do cacete ultimamente.
— Eu vou no “La Licorne”.
— Qual é, meu, ganhou na loteria?
— No bicho: deu veado na cabeça.
— É o que mais dá nessa terra ultimamente
As gargalhadas estrelaram coloridas de artifício.
— Hoje ouvi uns bacanas lá do serviço falando de um lugar novo aí todo cheio de coisa diferente pra rico.
— E o que tem de tão diferente? Boceta cheira tudo igual.
— Sadomasoquismo.
— Que porra é essa?
— É aquele troço de gente esquisita de roupa de couro, um dando chicotada no outro.
— Tô fora, meu: isso é coisa de tarado.
— Sei lá, bacana gosta de coisa extravagante.
— E tem quem paga pra apanhar? A polícia come pobre na porrada de graça.
Mais risadas. Já um tanto molhadas de cerveja.
— Onde fica essa porra?
— Na rua do Teatro de Arena. Eles esqueceram um cartão em cima da mesa do café.
— Deixa eu ver: “Argentinum Astrum”? Argentino é tudo filho da puta!
— É Latim — falou um que tinha tempos de coroinha na infância — Quer dizer “Estrela Prateada”.
— Só burguês decadente mesmo para gostar de um lugar com esse nome complicado metido à besta. Muito pretensioso para ser utilizado por bêbados, putas e demais animais da noite — esse gostava de se pensar intelectual do desespero esquerdizoide.
— Pra ser mais chique devia ser “Silver Star” — disse outro que imaginava ser mais moderninho fingir que sabia Inglês.
— Sei lá, eles falavam que era “A Casa da Mulher Vermelha”.
“A Casa da Mulher Vermelha”? Desse lugar meus tios já me falavam há mais de quarenta anos — comentou um bem mais velho, tropeçando língua enrolada a caminho do banheiro imundo — Mas eu nunca fui nem sei onde fica.
— Deve ser caro pra caralho.
— Eles diziam que é coisa fechada. Super discreta.
— Eu vou torrar a grana do bicho com as putas da alta da Laura lá no “La Licorne”. Quem vai?
— A gente não tá com tudo isso, meu. Vamos no “611” mesmo.
— Você não vem?
A grana que eu havia desviado do caixa da empresa estufava o bolso da calça. Já que o risco da demissão na segunda era quase certo, melhor gastar o dinheiro em grande estilo.
— Tô morto. Vou pra casa dormir.
Em São Paulo a gente tem um infantiloide desleixo carinhoso com essas coisas. A Teodoro Baima, ao contrário do que se pensa/diz, termina na Consolação e, com seu único estreito quarteirão escuro, começa naquela rua da qual ninguém nunca lembra o nome.
O barulhento “Redondo” na esquina em frente ao Arena. Depois do boteco pé sujo um pouco adiante à direita, os nada novidadeiros apagados prédios velhos de sempre.
Tarde da noite.
Mas o destino nunca dorme.
Ombros garoados caminhei passos friorentos em direção ao começo.
O néon brilhando irritantemente branco, quase prata, testemunhava sem engano: “Argentinum Astrum”. Agora lembrava: o prédio era uma igrejinha antiga, abandonada desde que me conhecia por gente.
— Prazer em vê-lo. Já era esperado.
Apesar do verdor cômico (não podia ser pintura, a pele dele era mesmo daquela incrível cor verde), assustador: não só pelo monstruoso aspecto de criatura de Frankenstein, mas pelo próprio tamanho, gigantesco, mesmo para alguém de boa estatura como eu. Dois metros e tanto, alto como um deus de pedra. E lá em cima, ridiculamente desproporcional, uma minúscula cabeça aquilina.
— Nunca estive aqui. Nem sabia que vinha. Como “era esperado”?
O cara com cara de ave de rapina silvou estranho quase como se sorrisse:
— Sou Aiwass e lhe dou as boas vindas.
— Aqui é “A Casa da Mulher Vermelha”?
— Não é o que diz o luminoso. Mas importa o que pedem os corações dos que chegam. Queira entrar, por favor.
Iluminação indefinível. Porém, estranhamente, ao mesmo tempo em que o ambiente parecia muito escuro, existia uma luminosidade brilhante de cor indescritível que permitia enxergar tudo em volta — apesar das nuvens enlouquecidas da fumaça dos cigarros — com a clareza demente da consciência de um alucinado. A música era algo hipnótico, quase inaudível, que escorregava insinuante ouvido adentro fazendo o sangue dançar leve, ritmado, pelas veias do crânio.
— O nosso desejo proibido é como um anjo-fera em emboscada, com caninos arreganhados, saltados para fora da boca salivosa, à espreita, pronto para atacar a nossa sanidade. É uma confissão feita para o mais fundo da alma, sem qualquer intermediação moral ou censura.
Sorria absolutamente nua à minha frente.
Branca, era toda branca: cabelos, unhas, pelos púbicos, olhos, toda a carne, como se houvesse sido mergulhada numa lata de tinta.
Apesar do aspecto exótico, uma intrigante beleza de um mistério inquietante. Um corpo maravilhoso, perfeito de sonho. Linda como nenhuma que jamais houvesse visto, exalava um salgado aroma de excitação de fêmea.
— Eu sou Alva, principal entre as Áureas, as brancas, as mais brilhantes. Se quiser, posso te apresentar a casa.
— Não estou acostumado, não conheço, nunca vi essas coisas.
— Paciência é para os que não têm ambição. Mas você deve jurar jamais revelar a ninguém qualquer detalhe do que vir aqui dentro, senão o castigo o atormentará enquanto viver.
A carne, feminina e masculina, despida ou quase, brilhava em todos os cantos contorcida em meio a gritos de transpiração gordurosa de prazer, ódio, gozo, medo, tristeza, algazarra de lamentações, de gemidos de tudo e de todos, sorrisos de deboche ou de agradecimento, lágrimas iguais e diferentes.
— O que essas pessoas fizeram?
— A simples presença delas aqui demonstra que elas sentem ou têm alguma culpa. E quem não tem nenhuma vem aqui para encontrar alguma. Mas tudo o que verá aqui visa antes à conversão e não à punição.
— Conversão?
— O sofrimento, ao contrário do que pensa a maioria, não é apenas o caminho de busca que da dor leva à contrição. Pode ser também a maravilhosa e infinita estrada de tijolos dourados que leva à liberdade de consciência. Somos como pastores, não torturadores ou carrascos. Podemos começar?
O coração engasgado na garganta.
Mas, cedo ou tarde, todos têm de enfrentar seus demônios interiores.
“Argentinum Astrum” é um lugar acessível apenas a privilegiados. Muitos são chamados, poucos escolhidos para usufruírem o êxtase único desse santuário do sexo. É o templo do gozo sagrado que proporciona somente aos verdadeiros de alma a oportunidade de saborearem as delícias de todas as cores do prazer.
Então eram mulheres negras. Criaturas com todas as partes do corpo nu coloridas numa mesma tonalidade brilhante:- o mais profundo negro. Ajoelhadas, deitadas, arrastando-se pelo chão como animais em contorções inacreditáveis, rostos esfregados com violência contra o solo, línguas lambendo sedentas o piso.
— Esse é o recanto das ebúrneas, as que se dedicam aos jogos de humilhação, à abjeção do comportamento mais primitivo de submissão vinculado à mais rasteira animalidade.
Depois eram mulheres amarelas com corpos torturados por filetes de cera derretida que escorriam generosos de velas sobre suas peles. Havia um estranho aroma quando ferros em brasa ou pontas de cigarro deixavam marcas de queimaduras naquelas carnes quase douradas.
— As amáras são peritas em se ofertarem às dores dos perigos do mais sofisticado sadismo.
Agora eram mulheres nuas impressionantemente azuis sendo mergulhadas à força em tanques de água, mantidas no fundo quase até morrerem.
— No território das lazúlis explora-se o orgasmo prolongado pelo desespero, na fronteira com a morte pela ausência de respiração por afogamento ou por asfixia.
Acima do chão, como se voassem, corpos roxos suspensos do teto, amarrados das maneiras mais intrincadamente enlouquecidas eram supliciados como num circo de horrores.
— As purpúreas submetem-se à intensa sensação de entrega pela impotência, ante a vulnerabilidade total trazida pela imobilidade.
— Eu nunca imaginei...
— A imaginação na busca da realização do prazer total não deve conhecer limites.
Aqui todos os corpos nus eram como o de Alva: leitosamente brancos.
— Minhas irmãs, as áureas.
— E qual é a especialidade das mulheres brancas como você?
— O branco é a soma de todas as cores: estamos capacitadas a responder a qualquer exigência, a todos os desejos.
Beijo pegajoso de língua elétrica, embrulhando seus braços ao redor de mim. No abraço corri as palmas das mãos pelos peitos firmes. Os bicos endureceram como se fossem de pedra. Pelos olhos das pontas dos dedos podia enxergar perfeitamente cada dobra aquecida da pele branca e lisa das nádegas sorridentes, generosamente oferecidas. Com o dedo abusado sondei o rego e enfiei fundo e decidido no pequeno buraco quente. Na ponta de meu dedo o contorno de cada prega daquele cu arregaçado, engordurado de gozo. As membranas internas de seu rabo respondiam inquietas a cada estímulo de meu dedo nervoso.
Sei lá por qual razão. A vontade veio, só isso. Comecei a esbofeteá-la com fúria de maníaco.
Caída no chão, pernas arreganhadas. Racha inchada pelo prazer demente. Boceta reluzindo estilhaços de luminosidade refletindo com umidade as luzes brilhantes do globo de cristal no teto. Sorriso estranho que nunca vi.
— Me use para seu prazer, da maneira que quiser.
Lenta como cobra desenrolou-se até ficar de bruços.
A chibata horrenda chegou à minha mão como aparecida do nada.
Não sei de onde tirei perícia. O couro estapeava firmemente as bochechas de sua bunda.
Dor, prazer, ansiedade, ou qualquer outro intenso estímulo. Emoções. Do fundo de sua carne o aroma de dor prazerosa entrava intenso pelas minhas narinas.
Todo golpe ardente correspondia a um grito que parecia de sofrimento. Retorcida, gemia a cada impacto das delgadas tiras de couro, mas eram reações de prazer.
Seus gritos eram de dor genuína.
Incendiadas faixas vermelhas foram se materializando deliciosas em sua pele branca. A pálida carne quente, agora vermelha, parecia estar pegando fogo. Sua bunda era uma adorável luminosa sombra rosa avermelhada naquela iluminação.
— Isso é muito bom, não pare, não pare, nunca!
Ofegava e gemia. Soluços alternados. Choro se transformando em gargalhadas dementes de prazer. Carne trêmula. Fluido pegajoso escorrendo de entre suas pernas.
Minha respiração pesada, apressada.
Uma onda quente de excitação subia do meio de minhas coxas, passeava calorosa por minha espinha e estourava desavergonhada em meu rosto pingando suor.
Encolhi-me o quanto pude, mas ela engoliu. Meu pau desapareceu dentro de sua pequena boca de lábios brancos e estourou um gozo de inundação. Gulosamente infantil caçou com a ponta da língua a gota brilhante de gosma branca que escapava pelo canto esquerdo da boca, ameaçando escorrer para o queixo e degustou o sabor da porra com uma perversidade moleque no sorriso.
Como era possível sentir tanto prazer em ferir alguém? Por que nunca tinha pensado numa coisa dessas como forma de obter satisfação sexual?
Suas carnes brancas agora brilhavam gotejantes e vermelhas na fria luz esbranquiçada da boate.
— Você está toda machucada, sangrando.
— Isso não o agrada?
Misteriosa e lentamente, à minha vista, todos os vergões, hematomas, contusões, lacerações, cortes, a sangueira toda, tudo desapareceu. A pele branca de seu corpo estava de novo impecavelmente linda, brilhando desejosa.
— Está gostando de conhecer as delícias da casa de todas as cores do prazer?
— Mas eu não vi nada vermelho aqui dentro.
— Tem razão, aqui nada é ou pode ser vermelho: somente ela e o sangue do prazer, que também dela provém.
— Ela quem?
Um silêncio de momento, depois as vozes em coro:
“Saudemos o eterno novo com nossos gritos de desvario, pois o tempo da concórdia, do consenso do falso moralismo está terminado. É chegada a hora do novo testamento do qual damos testemunho com a suprema decadência de nossa total depravação. Nossa senhora, Vermícia Rainha”.
Na frente o gigantesco cara verde com cabeça de pássaro; depois um indescritivelmente desordenado e maravilhoso cortejo sensual de mulheres nuas de todas as cores (brancas, negras, amarelas, azuis e roxas); ao final, ela, magnífica: grande, muito grande sem ser gorda, vermelha, incendiada da cabeça aos pés, uma visão única e com três, três magníficos e apetitosos seios.
A repetição monótona do mantra continuava hipnótica: “Saudemos o eterno novo com nossos gritos de desvario, pois o tempo da concórdia, do consenso do falso moralismo está terminado. É chegada a hora do novo testamento do qual damos testemunho com a suprema decadência de nossa total depravação. Nossa senhora, Vermícia Rainha”.
Não percebi, mas todos no ambiente estavam ajoelhados encarando a mulher vermelha em adoração.
Todos... menos eu.
Eu parecia ser o centro das atenções. Apesar da iluminação incerta, podia perceber cada olho de cada pessoa grudado em minha pele. Conseguia ouvir risadinhas dementes, rápidas, arremessadas contra mim.
A voz sanguínea interrogou com superioridade:
— Quem é esse que se atreve a manter-se em pé ante mim?
— Ele ainda não sabe Lady Vermícia, apenas não sabe, Senhora dos Três Seios — a voz de Alva era respeitosa, mas trazia um tom de perversidade, pude perceber.
— A ignorância não serve jamais de indulto à insolência.
Um sorriso pálido de excitação me apavorava acima daqueles inexplicáveis três seios. O deboche que me era endereçado parecia contagiar o ambiente.
— Então, minha pequenina prostituta — ela zombou — nunca viu uma mulher com três seios? É o espanto que te leva ao atrevimento de manter-se em pé em minha presença?
— Eu não tinha a intenção...
— Tudo bem, fique tranquilo. Olhe para eles, olhe o quanto quiser. Eles te agradam? São deliciosos, não? Venha, chegue mais perto para poder admirá-los melhor.
Nada mais, nenhum outro som: apenas a voz dela.
— O direito é o das coisas do corpo. Experimente!
Quente, macio, um sabor de carne feminina que jamais havia saboreado. Suguei como uma criança. Líquido adocicado.
— O esquerdo é o das coisas do espírito. Beba putinha, beba!
Esse era frio, mas estranhamente agradável. Pela minha língua deslizava agora um gosto picante sem ser incômodo.
— O mais importante de todos é esse, o do meio: dele jorra o leite das coisas da alma. Chupe, chupe com vontade, minha criancinha imunda.
Eu estava totalmente fora de controle. Agarrado àquele seio delicioso eu sugava cada gota daquele néctar com a ânsia de um maníaco. A cada gole eu parecia sufocar, mas a vontade de continuar era incontrolável. Meu estômago estava incendiado. Meus lábios pegajosos pareciam grudados à carne do terceiro seio vermelho. Bêbado sem estar.
O empurrão veio espantoso, com força precisa.
Uma pontiaguda unha vermelhíssima espetou-se em minha face direita:
 Você está pronto! Rasteje: para o chão que o lugar ao qual pertence! — ela disse autoritária, sem admitir contestação. Nós te aplicaremos, como manda a lei aos que se desviam, a humilhação como pena para expiação da tua infâmia.
Uma escuridão vermelha tomou conta do ambiente.
Réptil calafrio rastejou por minha espinha abaixo, quando ouvi a gargalhada debochada em meu ouvido.
Assim começou.
Sem dúvida, ela tinha total controle da situação.
Nenhuma chance de fuga.
Tentei protestar, mas fui imobilizado por um grupo de mulheres de todas as cores(brancas, negras, amarelas, azuis e roxas) de modo a permanecer indefeso e sem reação durante toda a provação que me aguardava dali para a frente. Mantido deitado de bruços com firmeza contra o piso, o mármore frio do chão mordia a pele de meus joelhos. Minhas calças foram arriadas e depois arrancadas com perícia e violência. Logo estava totalmente despido.
Surpreendido pelo primeiro açoite. O couro da chibata despencou raivoso instalando um dolorido caminho de chamas em minhas costas. Trinquei os dentes. Lágrimas começaram a se formar em meus olhos. Assustei-me com o volume do grito que lancei para o alto e que se perdeu no teto entre as luzes e o som atordoante da música. A recompensa foi a intensificação da força dos golpes. Eram mais espaçados no início. Ganhando velocidade lentamente, passaram a vir mais depressa depois.  A força aumentou gradualmente. A Mulher Vermelha de Três Seios mantinha o ritmo demoníaco do espancamento como se regesse uma sinfonia alucinada. O que até ali parecera um espetáculo de maravilhas e delícias transformava-se agora em um teatro de horrores.
Bobagem pensar em clemência.
A voz de Alva estranhamente alta em meu ouvido:
— Não se preocupe. Abandone-se à purgação: à dor se seguirá o prazer.
Apesar da música que continuava ensurdecedora, os únicos sons que conseguia ouvir eram o estalar cadenciado e ininterrupto do couro e os insultos dela, me chamando de escravinho sujo, homenzinho ridículo, desprezível pedaço de carne, repelente saco de pancadas e outros xingamentos.
Pernas arreganhadas, ela instalou-se em frente ao meu rosto:
— Nunca vi uma carne tão branquinha que ficasse vermelha tão depressa. Você vai ser a minha delícia pelo resto da noite. Me limpe! Lamba! Chupe todos os sucos de minha boceta!
Eu não queria, mas impossível não chorar de dor, as lágrimas insistiam em sair. Era doloroso e não era ao mesmo tempo. A dor e o prazer se sucediam numa alternância maluca.
Saliva, suor, meleca de fêmea tudo misturado ao medo em minha língua.
Olhos brancos gelados que pareciam olhar diretamente para dentro de minha alma, a respiração fervente de Alva queimando em minha nuca, enquanto ela continuava a recitar em meu ouvido:
— Você nunca vai se esquecer disso em sua vida. Muitos têm medo de encarar essa verdade, de tentar aprender a luxúria desses passos a mais, e mais: de gostar e gostar para sempre e de jamais poder se livrar dessa vontade que domina a vontade, que se gruda na gente como um vício maligno, que adere no mais fundo de nossa alma como uma tatuagem indelével impossível de ser apagada.
Absurdo de acreditar: agigantado como nunca o vira na vida, meu pau desavergonhado, endurecido como pedra. Transpirando um suor leitoso, Alva me masturbava furiosamente. Duvidava que com tanta dor conseguisse gozar.  Mas com duas rápidas e apertadas ordenhadas de sua pequena mas decidida mão branca, Alva com perícia apontou meu pau em direção ao peito da Mulher Vermelha e me fez esporrar abundante sobre o terceiro peito, o do meio, deixando-a coberta de gosma, escorrendo porra, minha porra.
Foi como o êxtase da agonia.
Levantei cambaleante, água nos olhos, o pênis chorando as últimas lágrimas de porra gotejando preguiçosas. O corpo retorcido como o de um boneco de trapos sangrava/doía em vários pontos, coberto por marcas, vergões, equimoses, chagas, contusões, machucaduras e todo o inútil repertório de bula de remédio repleto de palavras diferentes para definir coisas parecidas. Parecia uma patética imagem de Cristo de procissão de interior em Semana Santa.
Uma gargalhada de escárnio espalhou-se pelo ambiente. Riam todos os que assistiam o meu tormento.
Ódio com gosto de sangue raivoso na língua.
— Chega! Vocês são doentes. Loucos todos vocês, loucos!
— Loucos nós, minha putinha? — o tom de desprezo na voz da Mulher Vermelha era aterrorizante — Você desmanchou-se em excitação ao assistir a toda espécie de tortura que viu praticada contra os outros. Não fez questão nenhuma de esconder cada instante de prazer que experimentou ao espancar Alva. E apesar da gritaria, parece ter usufruído como poucos novatos toda a delícia que conseguiu extrair de seu suplício.
A ironia esbofeteou-me ao som das risadas que agora eram insuportáveis.
— Vá tomar no olho do seu cu! Você não passa de uma puta degenerada, uma aberração com esses seus três peitos!
De repente, o silêncio ensurdecedor.
A voz de Lady Vermícia veio encharcada de ódio vermelho:
— Seu insolente falso moralista! Esqueceu do que Alva lhe disse quando entrou aqui? Foi dada a você a oportunidade que a poucos é concedida de gozar as delícias dolorosas dos pecados que ainda se vai cometer, de enfrentar seus medos e admitir seus sentimentos, de encarar de frente teus mais secretos desejos proibidos e vê-los como uma confissão feita para você mesmo para o mais fundo de sua alma, sem qualquer intermediação moral ou censura. Mas você falhou, deixou-se dominar pela covardia fácil. Aiwass jogue esse verme na rua!
— Não encoste a mão em mim seu filho de uma puta!
A fúria da coragem que arrumei no mais fundo de meu medo espantou o gigante verde que olhava apalermado enquanto eu corria feito um desesperado em direção à porta.
O baque contra a lateral da viatura de polícia me fez chorar quente gemendo baixinho.
— Tá louco amigo?
— Pelo amor de Deus, seu guarda, me ajuda. Se aquele gorila verde me pega ele me mata!
— Gorila verde?
— É, o porteiro, o leão-de-chácara daquela boate, daquele bar, daquela casa lá, sei lá.
— Que boate, cara? Aqui não tem boate nenhuma. Isso aqui é uma rua residencial.
Tinha de haver uma explicação para... eu estar exatamente em frente ao prédio onde moro, num bairro distante do centro, da Boca do Lixo.
O policial me olhava meio abestalhado enquanto descia do carro e me pedia os documentos.
— A noite de farra foi da pesada, hein? Tomou quantas, amigo?
Não respondi. Estava ocupado, boca aberta de espanto, procurando pelo prédio da igrejinha com o néon piscando branco: “Argentinum Astrum”.
Liberado em seguida: os tiras não estavam a fim de se encherem o saco com um bebum “xarope”.
Sonâmbulo, pernas tremendo, subi as escadas do prédio. Meu reflexo no espelho da parede da portaria era lastimável.
Arranquei as roupas amassadas e suadas — roupas?, mas eu estava nu quando fugi de lá! O sofrimento que experimentava era terrível, mas a imagem do espelho não mentia: meu corpo estava intacto, nenhuma marca. Porém, eu sentia individualmente a dor de cada golpe que me fora dado.
Me joguei de costas na cama, fechei os olhos e... não dormi.
No dia seguinte voltei à Teodoro Baima. O prédio da igrejinha estava lá, abandonado, decadente, quase em ruínas como sempre conheci. Nem sinal da Casa da Mulher Vermelha. Todos a quem perguntei me encararam como se falassem com um doido.
Mais duas noites de dor insuportável sem dormir. Na madrugada da segunda o impulso veio do desconhecido e me masturbei: a punheta milagrosamente eliminou a dor e dormi por algumas horas.
No trabalho todos comentaram minha aparência epidêmica. Devolvi o dinheiro e meu crime não foi descoberto.
Consciência, o mais terrível dos vírus que nos mata a cada dia em que estamos vivos, mas do qual só no liberamos com a morte. Não há cura para a consciência. “Sua consciência será sua tortura”, Deus deveria ter dito ao homem quando o expulsou da felicidade.
Por um tempo foi uma obstinada tentativa honesta de querer esquecer de tudo aquilo. As masturbações já não faziam efeito: a dor, a ansiedade voltavam a atacar decididas como o fantasma de uma mulher de corpo totalmente branco como se houvesse sido mergulhada numa lata de tinta. Encontrei mulheres que pude espancar. Submeti-me a outras que me supliciaram. Inútil. A necessidade de retornar àquele lugar mantinha-se aflita.
Depois...
É sempre assim: a carência do passado mora na imaginação da gente em forma de lembrança sonhada.
Dois anos? Dois anos e meio já? Três?
Sei lá, venho procurando durante todo esse tempo.
Tinha certeza de que ficava naquela rua. Depois de um tempo, dúvida: talvez tenha se mudado para qualquer outra dessas daqui da Boca, escurecidas fedendo a asfalto chovido. Ou quem sabe para outra em outro bairro?
Não pode ter sumido no ar.
Nas noites de São Paulo, em todas as estações do ano, por esse tempo todo, no abafado de quando não chove, na garoada friagem de quando esfria, no fedor úmido de chuva asfaltada.
Procurando sempre. Firme. Sem desistência.
Pior foi hoje.
Após mais uma noite se sono intranqüilo, acordei imutável em minha ridiculum vitae.
Uma pichação no muro do terreno baldio em frente ao meu prédio: “A Casa da Mulher Vermelha” e uma seta vermelha malucamente rabiscada em spray apontando para a esquerda.
Mas para a esquerda não tem nada, só o muro no fim da rua.
Moro numa rua que não tem saída.
Nem eu.
O destino nunca dorme.
Com passos decididamente covardes, o coração dando pontapés no estômago, vou andando para a esquerda, em direção ao muro no fim da rua.